sábado, 29 de maio de 2010

REVER-TE


Specially for my cherished "B", fondly...



Abraço profundo.

Profundo acalanto.

Saudades de um mundo

de olhares profundos

a refletir distâncias e proximidades

e revelar o que há de mais subterrâneo,

mais escondido,

mais intrínseco,

mais visceral.



Se expiras é vento,

se inspiras, sou Eu.

Sabes quem sou Eu?

Sei quem és Tu?

Sei apenas que existe um Tu

que habita em mim,

e que não sei se já foi um dia Eu.

ou é um Eu transformado

agora em Tu.



Me vejo por dentro.

E lançando esse olhar interior

Vejo somente a Tua face.

Por que estás assim, tão dentro de mim?



E não queres sair...

E não quero que saias.

Nunca.

Fica! Para sempre aqui,

que é teu lugar...

Saudades de um mundo Meu e Teu.

Saudades de nós.


- Escrito em 22/05/2010 - 

VIOLÊNCIA E REDENÇÃO



Gosto de filmes (principalmente latinos) que tentam “fazer as pazes com o passado”, ou pelo contrário, rememorar um passado de violência para que as gerações futuras não se acomodem no conforto do esquecimento. É a exposição de um sentimento terceiro mundista de entender sua história, pontuada por ditaduras e atrocidades.

O filme A Teta Assustada (“La Teta Asustada”, Peru, 2009) ganhou inicialmente o título em português “O Leite da Amargura”. Escrito e dirigido com sensibilidade por Claudia Llosa, o filme é um exemplo da exposição das feridas não totalmente cicatrizadas de um país. Este é o segundo filme da diretora e caiu nas graças da crítica por uma série de motivos, principalmente pela estética e temática. É um filme exótico, aos olhos do colonizador, porque ainda alheios aos grandes pólos culturais do mundo moderno. Torço um pouco o nariz para isso. Não gosto desse tratamento dispensado a nós como se fôssemos os “bons selvagens” da vez. Mas tem lá seus méritos essa notoriedade. Aquela velha história: o importante é ser notado e conseguir dar o recado. A obra ficou mais famosa depois de concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2010, além de arrebatar vários prêmios, entre eles o Urso de Ouro do Festival de Berlin em 2009 e alguns Kikitos em Gramado, entre eles o de melhor atriz para Magaly Solier.

O filme é importante por vários motivos, principalmente pela visibilidade da América Latina no que se refere à arte cinematográfica. E não falo isso por bairrismo, embora eu seja inexoravelmente bairrista. Conhecemos muito pouco sobre o cinema peruano. O que sabemos é que é um país vizinho pobre, com imensas desigualdades e assolado pela violência e pela corrupção. E a obra permite várias leituras nesse sentido. Vejo que Llosa, sobrinha do escritor Mário Vargas Llosa – o que serve somente como uma pequena nota de rodapé -, mostra uma realidade bastante forte de seu país. Traz desigualdades sociais e violência, temas comuns a nós, principalmente no novo cinema brasileiro que explora, à exaustão, a Estética da Violência.

O argumento do filme de Llosa baseia-se, de maneira alegórica, na premissa que as mães violentadas pelos guerrilheiros terroristas da milícia paramilitar peruana Sendero Luminoso, durante os anos 80, transmitiriam para as filhas, através do leite materno, o medo, vergonha e sofrimento sentidos pela violação. Essa “doença” foi batizada de “Teta Assustada”. Segundo a diretora, existem diversos relatos, principalmente dos povos indígenas contrários à causa do Sendero Luminoso, em que as mulheres violentadas transmitiriam essa enfermidade aos seus filhos. Especulações à parte, a história parte dessa violação dos direitos humanos mais básicos para tratar de temas universais como incomunicabilidade, medo, isolamento e principalmente a luta por reverter uma situação de opressão e seguir a vida em frente.

A narrativa é fragmentada, a trama é permeada de simbolismos (relacionados às relações de aprisionamento e libertação dos personagens principalmente) e possui alguns momentos que me agradaram bastante. A fotografia é bem trabalhada. Os enquadramentos rigorosos e precisos. Através da fotografia a personagem principal se constrói e cresce na narrativa, de tal forma que é a própria fotografia o que dá fôlego à personagem. A diretora apostou numa tendência estética - embora exótica - já bem comum, composta por longas cenas estáticas onde a personagem contempla sua própria desventura voltada para o vazio, câmeras distanciadas em planos bastante abertos, com grandes takes fixos de áreas rurais e dos subúrbios de Lima, onde aparentemente nada acontece, numa narrativa lenta com cortes inusitados que formam um mosaico com pequenos pedaços de ações.

O filme tem um tom bastante lírico e romântico de ver o mundo, calcado em alegorias e metáforas. Os diálogos (na maioria monólogos ou diálogos com o expectador) da personagem principal são construídos através de cânticos tristíssimos, numa forma que me parece muito um modo indígena, origem da protagonista, de contar histórias. Aliás, ela quase não fala, resumindo-se apenas em cantar seu canto forte e melancólico.

Fausta (Magaly Solier) é uma vítima da história de um povo. Herdeira da violência contra uma nação. Como seu tio comenta com um médico, logo no início da trama, ela é uma dessas crianças “sem alma”, condenadas pela “maldição da teta assustada”. Por isso é como é. Nesse sentido, as crianças nascidas dessas mães violentadas absorviam o medo das mães e passavam a ter uma vida repleta de privações. Ela não sofreu violência sexual, estricto sensu, mas é assolada pela violência imaginária (associada à figura masculina) trazida como uma tradição e um legado. Vive isolada do mundo, amedrontada pela violência sofrida pela mãe ainda quando a moça estava em seu ventre, ou até mesmo antes disso. Ela não se comunica com ninguém, exceto com a própria mãe. E a própria família a exclui por ser diferente dos demais. Ninguém quer ter a representação da violência que tentam esquecer sentada à mesa em todas as refeições. Também não conhece o mundo exterior, a não ser acompanhada da mãe. A comunicação entre ambas se dá através dos cânticos entoados em sua língua materna, o indígena quéchua, falado pelos habitantes à margem de Lima e pelos familiares de Fausta.

O filme é permeado de figuras femininas bastante fortes. Ao passo que o masculino é, embora não maniqueizado, associado ao violento e perverso, o feminino desponta como algo redentor. Tanto que não existem figuras masculinas de peso na trama. A força feminina é retratada partindo da própria protagonista, perpassando pela mãe, até a própria terra. A mãe, figura que aparece no início da trama, é forte e presente durante todo o filme, mesmo depois de morta. Uma mulher marcada pelo passado que tentou (em vão) ao longo da vida se esgueirar das marcas da violência e seguir adiante. Fausta é uma mulher que tenta recobrar seu lugar no mundo e libertar-se do passado que ela própria não viveu. Os traumas são fortes de tal forma que para se proteger do mundo introduziu uma batata na vagina para evitar ser violentada como sua mãe foi. A relação da protagonista com o tubérculo tem uma simbologia forte. Além de ser surreal a situação da protagonista, a relação do povo peruano com esse alimento é intrínseca. Batatas são uma grande fonte de alimentação dos peruanos. Nesse sentido, é da própria terra, mãe de todos em última instância, que Fausta busca um escudo para proteger-se do opressor. Ela busca no feminino a proteção contra o masculino ameaçador. Outro personagem feminino forte, colocado no outro lado do cabo de tensão social retratado, é a limenha abastada com quem Fausta vai trabalhar como empregada doméstica para poder pagar o funeral da mãe. Ela representa o nicho socialmente oposto ao de Fausta, mas igualmente oprimido. Afinal, todas são filhas da mesma terra, feitas do mesmo barro.

O sofrimento e a dor de Fausta são o de um povo inteiro, causados pela instabilidade social e política de uma nação, é o grande mote e pano de fundo da trama. Mas o filme é mais que isto. É um filme que gira entorno de revezes e de inúmeras (im)possibilidades de amor: o amor da mãe pela filha e a tentativa de protegê-la, mesmo que a castrando, e principalmente da busca da própria protagonista, o que ela somente compreenderá quando descobrir seus subterrâneos e conseguir definir-se. O revez de Fausta é libertar-se. Motivada pela morte da mãe a enfrentar o mundo exterior e principalmente o opressor imagético (masculino) criado em torno dela ao longo da vida, ela lança-se na busca por novos significados para o mundo e para si mesma. E expurga ao longo da trama, através do confronto com o mundo exterior, seus medos, sua miséria e seus dilemas. Fausta representa a libertação - ou pelo menos uma árdua tentativa de liberdade - de um povo de seu passado de sofrimento.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

SODADE


"Si bô 'screvê' me
'M ta 'screvê be
Si bô 'squecê me
'M ta 'squecê be
Até dia
Qui bô voltà”
                       - Cesaria Evora - "Sodade" -


É clichê, eu sei, mas é lá vai...Saudade só existe na língua portuguesa. E somente nós, herdeiros do legado lusitano, trazemos viva no peito essa melancolia lírica. Como canta Chico, “todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo”. É fato.

Como se explica a saudade? Como se traduz? Acho que ninguém consegue. Sinceramente, eu não sei. Somente sinto. E percebo que estou, a cada dia mais, condenado a sentí-la com mais intensidade. Tenho saudades incontáveis e incomensuráveis. Já é público que sou desmedido e que meio chorão. Só me resta assumir. Não posso fugir da minha natureza última.

Não importa onde eu esteja nem para onde vá, sempre sinto saudades de algo que deixei. E tendo a ficar com os olhos marejados na hora da despedida, entre acenos, revistas e maçãs na plataforma. Hoje, quando em minha nova morada, sinto saudades das pessoas que amo, deixadas para trás em idos tempos e longínquos pagos. Quando regresso do estrangeiro, “forasteiro do que vejo e ouço”, ao melhor estilo Pessoa de sentir o mundo, sinto saudades da nova vida que começo a construir. Sinto saudades dos rostos, dos cheiros dos lugares, do calor de algumas pessoas, dos sorrisos e até mesmo das ausências consentidas.

Um belo dia resolvi mudar. Arrumei a mala e abandonei um mundo bem quentinho e confortável para explorar outras paragens. Era preciso navegar. Já escrevi aqui sobre isso. E quem diria, quando retorno ao “velho mundo” que deixei, mesmo que por pouco tempo, sinto saudades do que deixo aqui no “novo mundo”.

Sentir saudade não é de todo ruim, vejo agora. E não falo isso devido à minha veia portuguesa e minha inclinação ao dramalhão. Digo porque às vezes, na distância, reconhecemos o outro e o confirmamos. Estranhamente, sinto-me mais próximo das pessoas que amo quando estou longe delas. E regresso com mais gana de revê-las. Me reconforta arrumar a mala e reencontrá-las. Da mesma forma, é reconfortante voltar para casa, “trazendo na mala bastante saudade”, assim meio Elba Ramalho (também sou um cafona assumido), e saber que vou encontrar alguém que me espera na na hora do desembarque. Saber que serei recebido com carinho pelo retorno, no porto seguro que tento construir diariamente, e mesmo que precariamente, saciarei momentaneamente a saudade que trago indelével no peito.

Hoje arrumo a mala num misto de alegria e tristeza. Aliás, quase tudo na vida é um misto desses sentimentos (sim, aqui está claro meu tombo pelo drama lusitano). Isto porque a primeira regra que aprendemos no mundo dos adultos é que não se pode ter tudo e que escolher um caminho implica, necessariamente, em abrir mão de todos os possíveis demais. De quebra, com o peso da responsabilidade pelas nossas escolhas erradas e com a incerteza de termos feito a melhor escolha. Nunca sabemos se estamos no caminho certo ou não, afinal não estamos na outra estrada para saber o que ela reserva. Isso que torna a vida tão fascinante e ao mesmo tempo angustiante.

Por falar em angústias cotidianas, lasco mais um clichê e fico por aqui. Lembro sempre da música Serra do Luar, de Leila Pinheiro, nas horas em que me bate a velha angústia existencial metafísica alemã schopenhaueriana: “Tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo”.

Mais uma vez a mala está arrumada, encostada ao lado na porta. E o coração mais apertado.

terça-feira, 18 de maio de 2010

LE VENT VOUS PORTERA

“Estamos acostumados que esclareçam todos os mistérios, que nos expliquem todos os pequenos segredos escondidos. Me recuso a aceitar. O mistério faz parte da vida.”
(Trecho do filme "Canções de Amor")

Sinto saudades dos tempos de adolescente, quando os sofrimentos duravam uma semanal ou um dia, ou o tempo de ouvir uma música triste, fosse qual fosse, que dizia tudo o que eu sentia naquele momento. Algo que me traduzisse e desse sentido ao mundo que estava começando a conhecer. Então eu sofria como um cão, chorava abafado no travesseiro até exaurir a dor, secava as lágrimas e ia, errático, viver da melhor maneira que conseguia, tateando no escuro em busca de luz.

Crescer é perder essa capacidade de sonhar corajosamente. Os sofrimentos da adultez duram mais tempo, são sentidos mais intensamente, calam muito mais fundo na alma, deixam marcas para sempre, mas são sentidos com mais verdade. Mesmo que sejam causados pelas mesmas ilusões adolescentes, pelos mesmos sonhos desfeitos e pelas mesmas negações. Provavelmente porque quando somos adolescentes não tememos o perigo. Porque não tivemos experiências que nos fazem, na vida adulta, puxar o freio de mão. Ser adolescente é não temer as conseqüências. A adultez nos deixa caretas e medrosos porque já passamos por essas coisas e repeti-las, ad infinitum, como no mito grego do ser original cindido e renegado a viver eternamente buscando a parte que falta, nos causa medo. Porque queremos ser como os seres originários, em última instância, queremos ser fortes e destronar Zeus, porque queremos ascender ao Olimpo sem máculas, sem mágoas, sem sofrimentos, puros e perfeitos.

“Ama-me menos, mas ama-me por muito tempo”. Esta frase encerra o filme Canções de Amor (“Les Chansons D’Amour”, 2007). E bateu como um soco no meu frágil estômago vazio. O filme desperta essa sensação adolescente e valente de acreditar no amor, na vida, no inesperado devir que é viver. O filme é escrito e dirigido pelo aclamado cineasta francês Christophe Honoré (o mesmo de Ma Mère, Dans Paris e o mais recente Non, Ma Fille, Tu N’iras Pas Danser) e conta com atuações honestas e convincentes de Louis Garrel (Os Sonhadores), Ludivine Sagnier (Paris, Eu Te amo) e Clotilde Hesme (A Bela Junie).

Trata-se de um musical delicioso, onde a atmosfera romântica de Paris é também melancólica e triste. As canções compostas por Alex Beaupain encaixam-se perfeitamente na trama e criam um vínculo com o espectador, como se a cada acorde entrássemos na alma dos personagens, sentindo suas angústias e sua solidão. As canções funcionam como uma espécie de desvelamento dos sentimentos ocultos dos personagens. Da mesma forma Honoré trabalha a fotografia do filme com maestria e sensibilidade, por exemplo, quando retrata a morte em preto e branco com belíssimas imagens congeladas, ou quando transforma a Paris das Luzes em cenário de juras de amor ou absoluta e fria solidão e desespero.

A obra é dividida em três atos: A Partida, A Ausência e O Recomeço. E trata com singeleza e profundidade temas como morte, ausência e as diversas manifestações da sexualidade humana. Mostra com delicadeza absurda as diversas nuances do amor, as várias formas de sofrer uma perda, as diversas manifestações do ciúme, as nossas inseguranças cotidianas, nossas expectativas, as cobranças em relação ao mundo, ao outro e a nós mesmos, a eterna busca por sentido e a incessante necessidade de recomeçar tudo do zero (ou juntar os cacos que restam e seguir em frente).

O filme é primoroso. O amor e sua falta é, primordialmente, o que move os personagens na trama. Com fortes influências da nouvelle vague (o diretor rende várias homenagens a Jean-Luc Godard e François Truffault) é um deleite para o espectador. É absolutamente impossível terminar de ver o filme não acreditando no recomeço.

Assisti ao filme em uma noite chuvosa e fria. Dolorosamente ausente. Necessariamente solitária. Mas livre e despreocupada com os desígnios do universo para mim. Bem nouvelle vague. Aquelas noites que de tão escuras e sombrias chegam a ser reconfortantes. Depois de ver o filme caminhei pelas ruas desertas desta cidade estranha ao meu mundo, com um guarda-chuva colorido emprestado em riste em uma mão e meu cigarro, fiel companheiro dessas horas, na outra, pensando na vida, absorto ainda nos efeitos do filme. Ouvia as batidas descompassadas do meu coração e os pingos grossos da chuva sobre o guarda-chuva. Desviava das poças d´água, dos galhos e das folhas molhadas no chão. E pensava no quanto é bom amar livremente, sem amarras, sem prisões. E sentia que esse é o amor de verdade e esse é o amor que tenho para oferecer. Sei que sou utópico e que escrevo ainda sob o efeito letárgico do filme que acabei de assistir. Mas sou assim mesmo, utopicamente cafona. E queria dividir esse sentimento, utopicamente. Queria oferecer o que sinto, partilhar, mesmo que por telefone, o que estava passando pelo meu coração naquele momento. Mas encontrei somente a secretária eletrônica pela frente.


sexta-feira, 7 de maio de 2010

MEDITAÇÃO

Acendeu mais um cigarro e preparou mais uma xícara de café forte na velha cafeteira herdada da família. Sentou-se desconfortavelmente na poltrona de veludo verde habitual e calmamente esperou a dor, velha conhecida, abrandar. Sabia que talvez precisasse de muito tempo até que aquela pontada no peito se exaurisse completamente estando ele prostrado como estava. Mas havia cansado de lutar. Com a resignação dos derrotados – ou a paciência dos sábios? - esperou o tempo passar angustiantemente arrastado, como se cada segundo tivesse grilhões tilintando pela casa. De toda sorte, queria somente que a dor findasse, que de excruciante ficasse cada vez mais branda até que, sem que ele percebesse, se tornasse apenas uma vaga lembrança de um passado remoto, tal qual uma cicatriz no joelho, que quando vista na adultez lembra vagamente a dor do tombo da primeira bicicleta da infância.

No velho apartamento cheirando a mofo o passado era tudo o que existia no presente. Acariciava o braço da poltrona com carinho, como se tocasse o corpo do ser amado, perdido na confusão de tanta noite e tanto dia. Como se essa sensação tátil abrisse um portal para uma realidade paralela, uma realidade onde as coisas tinham mais cores e o mundo fazia algum sentido.

Fechou os olhos, sentindo o toque do veludo e o cheiro do café misturado ao do mofo e ao do cigarro, e afundou no abismo escuro de si mesmo. Nesse corte com a realidade, caminhava por ruas desertas, de casas antigas, em manhãs ensolaradas tipicamente outonais. Os plátanos desfolhados ofereciam um fofo e denso tapete em tons dourados sobre a calçada de seixos. As fachadas das casas antigas, com balcões de peitoris enferrujados e pesadas portas descascadas de madeira em duas folhas despertavam-lhe uma ternura há muito perdida, lembrança dos idos tempos em que tinha por quem sorrir e motivos para querer viver. Imaginava as vidas dos moradores daqueles casebres, o que faziam, o que falavam, o que pensavam, como se vestiam, o que comiam, seus gostos, seus cheiros, suas cores e as rotinas cotidianas das casas. Pensava se existia amor ou se existia sofrimento naqueles lares. Imaginava, principalmente, como seria sua própria vida se fosse outra, se fosse numa daquelas vidas. Parou em frente a uma das casas e de pronto foi remetido à infância, ao cheiro da comida da mãe, aos gostos que as tardes eternas daquele tempo tinham. Gosto de fruta comida no pé, de pão quentinho, de aconchego e de carinho. A movimentação no interior da casa, que via através das finas cortinas de renda alvíssimas, despertavam nele uma saudade pontiaguda e lanciante do tempo que perdeu, do tempo em que a vida era mais simples e o significado de tudo mais profundo. Deu as costas à casa e continuou caminhando.

Um vento frio soprava lentamente. Puxou a gola do pesado casaco de lã, colocou as mãos nos bolsos e caminhou sobre o tapete de folhas. No fim da rua havia uma pequena praça deserta. Aproximou-se da fonte em estilo neoclássico localizada no centro, revestida de azulejos portugueses, onde um solitário querubim de bronze jorrava água, com pombos repousados sobre seus ombros, enquanto pardais cantavam seu canto tristíssimo. Espanou com as mãos as folhas de um banco em frente à fonte e recostou-se. Ouvia-se apenas o som dos pardais, cortado pelo da água jorrando e pelo vento nas copas ralas das poucas árvores. Um sol levemente morno tocava-lhe o rosto. Um toque aconchegante como o do ser que foi fiel depositário de suas mais profundas juras de amor. Sabia plenamente que jamais amou alguém tão plenamente. Sabia ser um sentimento único e definitivo. Mas o pensamento sobre esse encontro de almas pontuava exatamente isto: IMPOSSIBILIDADE. Impossibilidade de viver plenamente - na prática - o amor que sentia tão fortemente. Isto porque havia realizado uma tentativa de amor que, como quase tudo em sua vida, não chegou a ser. Impossibilidade de entregar, como um carteiro, esse amor nas mãos do destinatário. Impossibilidade de reproduzir em outro momento da vida esse sentimento, com outra pessoa - ou sozinho que fosse - , porque sabia que esse sentimento era o que tinha de mais nobre e seria absolutamente triste simplesmente sufocá-lo no peito. Embora o sentimento ainda existisse em seu coração, era como uma roupa que não serviria mais e que jamais poderia ser dada a outra pessoa, porque não serviria em ninguém, e jamais poderia ser usada por ele próprio porque não o aqueceria nas noites de inverno.

Esse sentimento era tão intenso que acabava-se em si mesmo e na negação da cotidianidade, de seu exercício diário, foi sucumbido pela dor e o que trouxe nas mãos foi guardado no fundo da alma, junto com todos os escombros do passado que tentava de todas as formas descartar e esquecer. Bom seria se conseguisse sair inteiro. Inteiro como entrou. Mas as marcas deixadas eram indeléveis e como em tudo na vida, não era possível voltar atrás.

Sentindo um desconforto físico causado pelo frio e pelo banco da praça levantou-se e continuou caminhando pelas ruas daquele lugar que não identificava. Entrou em uma cafeteria de esquina, sentou-se em uma mesa no canto do pequeno lugar, entre o balcão e uma janela que mais parecia uma vitrine, pediu um café e com ambas as mãos em concha segurou o caneco para aquecê-las. Subitamente sentiu um conforto imenso e uma vontade quase desesperada de chorar. Por tudo, por todos, pela vida inteira.

Retornou lentamente. Abriu os olhos, acostumando a retina à luz do ambiente. Inicialmente percebeu que de diferente somente o café que havia esfriado, o cigarro que havia apagado e o dia que havia escorrido no horizonte e dado lugar a uma noite escura e sem estrelas. Havia retornado à mesma vida que tinha, onde as pilhas de livros não lidos, filmes não vistos, contas não pagas, orgasmos negados e amores não vividos aumentavam a cada dia, uma vida protocolar e mecânica de oito às dezoito cercado de pessoas cinzentas, de atividades medianas em rotinas medíocres. Porém, olhando mais detidamente, percebera da experiência que acabara de ter que, apesar dos anos vividos e dos sofrimentos acumulados, ainda não havia aprendido a lidar com as frustrações, negações, ausências e privações de toda ordem. Embora não quisesse muito, queria mais. Inconformado. Amargurado. Imobilizado. Seco. Árido como um deserto. Talvez, lá no fundo da alma, quisesse voltar no tempo, como se no passado houvesse algum refúgio seguro. Como um retorno ao útero. Grande ilusão. A fonte primordial do sofrimento era a negação de que a vida era um jogo no qual ele havia sido derrotado. Suspirou profundamente. Bebeu num único gole o café amargo e frio e acendeu outro cigarro. Xeque-mate.