sexta-feira, 7 de maio de 2010

MEDITAÇÃO

Acendeu mais um cigarro e preparou mais uma xícara de café forte na velha cafeteira herdada da família. Sentou-se desconfortavelmente na poltrona de veludo verde habitual e calmamente esperou a dor, velha conhecida, abrandar. Sabia que talvez precisasse de muito tempo até que aquela pontada no peito se exaurisse completamente estando ele prostrado como estava. Mas havia cansado de lutar. Com a resignação dos derrotados – ou a paciência dos sábios? - esperou o tempo passar angustiantemente arrastado, como se cada segundo tivesse grilhões tilintando pela casa. De toda sorte, queria somente que a dor findasse, que de excruciante ficasse cada vez mais branda até que, sem que ele percebesse, se tornasse apenas uma vaga lembrança de um passado remoto, tal qual uma cicatriz no joelho, que quando vista na adultez lembra vagamente a dor do tombo da primeira bicicleta da infância.

No velho apartamento cheirando a mofo o passado era tudo o que existia no presente. Acariciava o braço da poltrona com carinho, como se tocasse o corpo do ser amado, perdido na confusão de tanta noite e tanto dia. Como se essa sensação tátil abrisse um portal para uma realidade paralela, uma realidade onde as coisas tinham mais cores e o mundo fazia algum sentido.

Fechou os olhos, sentindo o toque do veludo e o cheiro do café misturado ao do mofo e ao do cigarro, e afundou no abismo escuro de si mesmo. Nesse corte com a realidade, caminhava por ruas desertas, de casas antigas, em manhãs ensolaradas tipicamente outonais. Os plátanos desfolhados ofereciam um fofo e denso tapete em tons dourados sobre a calçada de seixos. As fachadas das casas antigas, com balcões de peitoris enferrujados e pesadas portas descascadas de madeira em duas folhas despertavam-lhe uma ternura há muito perdida, lembrança dos idos tempos em que tinha por quem sorrir e motivos para querer viver. Imaginava as vidas dos moradores daqueles casebres, o que faziam, o que falavam, o que pensavam, como se vestiam, o que comiam, seus gostos, seus cheiros, suas cores e as rotinas cotidianas das casas. Pensava se existia amor ou se existia sofrimento naqueles lares. Imaginava, principalmente, como seria sua própria vida se fosse outra, se fosse numa daquelas vidas. Parou em frente a uma das casas e de pronto foi remetido à infância, ao cheiro da comida da mãe, aos gostos que as tardes eternas daquele tempo tinham. Gosto de fruta comida no pé, de pão quentinho, de aconchego e de carinho. A movimentação no interior da casa, que via através das finas cortinas de renda alvíssimas, despertavam nele uma saudade pontiaguda e lanciante do tempo que perdeu, do tempo em que a vida era mais simples e o significado de tudo mais profundo. Deu as costas à casa e continuou caminhando.

Um vento frio soprava lentamente. Puxou a gola do pesado casaco de lã, colocou as mãos nos bolsos e caminhou sobre o tapete de folhas. No fim da rua havia uma pequena praça deserta. Aproximou-se da fonte em estilo neoclássico localizada no centro, revestida de azulejos portugueses, onde um solitário querubim de bronze jorrava água, com pombos repousados sobre seus ombros, enquanto pardais cantavam seu canto tristíssimo. Espanou com as mãos as folhas de um banco em frente à fonte e recostou-se. Ouvia-se apenas o som dos pardais, cortado pelo da água jorrando e pelo vento nas copas ralas das poucas árvores. Um sol levemente morno tocava-lhe o rosto. Um toque aconchegante como o do ser que foi fiel depositário de suas mais profundas juras de amor. Sabia plenamente que jamais amou alguém tão plenamente. Sabia ser um sentimento único e definitivo. Mas o pensamento sobre esse encontro de almas pontuava exatamente isto: IMPOSSIBILIDADE. Impossibilidade de viver plenamente - na prática - o amor que sentia tão fortemente. Isto porque havia realizado uma tentativa de amor que, como quase tudo em sua vida, não chegou a ser. Impossibilidade de entregar, como um carteiro, esse amor nas mãos do destinatário. Impossibilidade de reproduzir em outro momento da vida esse sentimento, com outra pessoa - ou sozinho que fosse - , porque sabia que esse sentimento era o que tinha de mais nobre e seria absolutamente triste simplesmente sufocá-lo no peito. Embora o sentimento ainda existisse em seu coração, era como uma roupa que não serviria mais e que jamais poderia ser dada a outra pessoa, porque não serviria em ninguém, e jamais poderia ser usada por ele próprio porque não o aqueceria nas noites de inverno.

Esse sentimento era tão intenso que acabava-se em si mesmo e na negação da cotidianidade, de seu exercício diário, foi sucumbido pela dor e o que trouxe nas mãos foi guardado no fundo da alma, junto com todos os escombros do passado que tentava de todas as formas descartar e esquecer. Bom seria se conseguisse sair inteiro. Inteiro como entrou. Mas as marcas deixadas eram indeléveis e como em tudo na vida, não era possível voltar atrás.

Sentindo um desconforto físico causado pelo frio e pelo banco da praça levantou-se e continuou caminhando pelas ruas daquele lugar que não identificava. Entrou em uma cafeteria de esquina, sentou-se em uma mesa no canto do pequeno lugar, entre o balcão e uma janela que mais parecia uma vitrine, pediu um café e com ambas as mãos em concha segurou o caneco para aquecê-las. Subitamente sentiu um conforto imenso e uma vontade quase desesperada de chorar. Por tudo, por todos, pela vida inteira.

Retornou lentamente. Abriu os olhos, acostumando a retina à luz do ambiente. Inicialmente percebeu que de diferente somente o café que havia esfriado, o cigarro que havia apagado e o dia que havia escorrido no horizonte e dado lugar a uma noite escura e sem estrelas. Havia retornado à mesma vida que tinha, onde as pilhas de livros não lidos, filmes não vistos, contas não pagas, orgasmos negados e amores não vividos aumentavam a cada dia, uma vida protocolar e mecânica de oito às dezoito cercado de pessoas cinzentas, de atividades medianas em rotinas medíocres. Porém, olhando mais detidamente, percebera da experiência que acabara de ter que, apesar dos anos vividos e dos sofrimentos acumulados, ainda não havia aprendido a lidar com as frustrações, negações, ausências e privações de toda ordem. Embora não quisesse muito, queria mais. Inconformado. Amargurado. Imobilizado. Seco. Árido como um deserto. Talvez, lá no fundo da alma, quisesse voltar no tempo, como se no passado houvesse algum refúgio seguro. Como um retorno ao útero. Grande ilusão. A fonte primordial do sofrimento era a negação de que a vida era um jogo no qual ele havia sido derrotado. Suspirou profundamente. Bebeu num único gole o café amargo e frio e acendeu outro cigarro. Xeque-mate.

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