Gosto de filmes (principalmente latinos) que tentam “fazer as pazes com o passado”, ou pelo contrário, rememorar um passado de violência para que as gerações futuras não se acomodem no conforto do esquecimento. É a exposição de um sentimento terceiro mundista de entender sua história, pontuada por ditaduras e atrocidades.
O filme A Teta Assustada (“La Teta Asustada”, Peru, 2009) ganhou inicialmente o título em português “O Leite da Amargura”. Escrito e dirigido com sensibilidade por Claudia Llosa, o filme é um exemplo da exposição das feridas não totalmente cicatrizadas de um país. Este é o segundo filme da diretora e caiu nas graças da crítica por uma série de motivos, principalmente pela estética e temática. É um filme exótico, aos olhos do colonizador, porque ainda alheios aos grandes pólos culturais do mundo moderno. Torço um pouco o nariz para isso. Não gosto desse tratamento dispensado a nós como se fôssemos os “bons selvagens” da vez. Mas tem lá seus méritos essa notoriedade. Aquela velha história: o importante é ser notado e conseguir dar o recado. A obra ficou mais famosa depois de concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2010, além de arrebatar vários prêmios, entre eles o Urso de Ouro do Festival de Berlin em 2009 e alguns Kikitos em Gramado, entre eles o de melhor atriz para Magaly Solier.
O filme é importante por vários motivos, principalmente pela visibilidade da América Latina no que se refere à arte cinematográfica. E não falo isso por bairrismo, embora eu seja inexoravelmente bairrista. Conhecemos muito pouco sobre o cinema peruano. O que sabemos é que é um país vizinho pobre, com imensas desigualdades e assolado pela violência e pela corrupção. E a obra permite várias leituras nesse sentido. Vejo que Llosa, sobrinha do escritor Mário Vargas Llosa – o que serve somente como uma pequena nota de rodapé -, mostra uma realidade bastante forte de seu país. Traz desigualdades sociais e violência, temas comuns a nós, principalmente no novo cinema brasileiro que explora, à exaustão, a Estética da Violência.
O argumento do filme de Llosa baseia-se, de maneira alegórica, na premissa que as mães violentadas pelos guerrilheiros terroristas da milícia paramilitar peruana Sendero Luminoso, durante os anos 80, transmitiriam para as filhas, através do leite materno, o medo, vergonha e sofrimento sentidos pela violação. Essa “doença” foi batizada de “Teta Assustada”. Segundo a diretora, existem diversos relatos, principalmente dos povos indígenas contrários à causa do Sendero Luminoso, em que as mulheres violentadas transmitiriam essa enfermidade aos seus filhos. Especulações à parte, a história parte dessa violação dos direitos humanos mais básicos para tratar de temas universais como incomunicabilidade, medo, isolamento e principalmente a luta por reverter uma situação de opressão e seguir a vida em frente.
A narrativa é fragmentada, a trama é permeada de simbolismos (relacionados às relações de aprisionamento e libertação dos personagens principalmente) e possui alguns momentos que me agradaram bastante. A fotografia é bem trabalhada. Os enquadramentos rigorosos e precisos. Através da fotografia a personagem principal se constrói e cresce na narrativa, de tal forma que é a própria fotografia o que dá fôlego à personagem. A diretora apostou numa tendência estética - embora exótica - já bem comum, composta por longas cenas estáticas onde a personagem contempla sua própria desventura voltada para o vazio, câmeras distanciadas em planos bastante abertos, com grandes takes fixos de áreas rurais e dos subúrbios de Lima, onde aparentemente nada acontece, numa narrativa lenta com cortes inusitados que formam um mosaico com pequenos pedaços de ações.
O filme tem um tom bastante lírico e romântico de ver o mundo, calcado em alegorias e metáforas. Os diálogos (na maioria monólogos ou diálogos com o expectador) da personagem principal são construídos através de cânticos tristíssimos, numa forma que me parece muito um modo indígena, origem da protagonista, de contar histórias. Aliás, ela quase não fala, resumindo-se apenas em cantar seu canto forte e melancólico.
Fausta (Magaly Solier) é uma vítima da história de um povo. Herdeira da violência contra uma nação. Como seu tio comenta com um médico, logo no início da trama, ela é uma dessas crianças “sem alma”, condenadas pela “maldição da teta assustada”. Por isso é como é. Nesse sentido, as crianças nascidas dessas mães violentadas absorviam o medo das mães e passavam a ter uma vida repleta de privações. Ela não sofreu violência sexual, estricto sensu, mas é assolada pela violência imaginária (associada à figura masculina) trazida como uma tradição e um legado. Vive isolada do mundo, amedrontada pela violência sofrida pela mãe ainda quando a moça estava em seu ventre, ou até mesmo antes disso. Ela não se comunica com ninguém, exceto com a própria mãe. E a própria família a exclui por ser diferente dos demais. Ninguém quer ter a representação da violência que tentam esquecer sentada à mesa em todas as refeições. Também não conhece o mundo exterior, a não ser acompanhada da mãe. A comunicação entre ambas se dá através dos cânticos entoados em sua língua materna, o indígena quéchua, falado pelos habitantes à margem de Lima e pelos familiares de Fausta.
O filme é permeado de figuras femininas bastante fortes. Ao passo que o masculino é, embora não maniqueizado, associado ao violento e perverso, o feminino desponta como algo redentor. Tanto que não existem figuras masculinas de peso na trama. A força feminina é retratada partindo da própria protagonista, perpassando pela mãe, até a própria terra. A mãe, figura que aparece no início da trama, é forte e presente durante todo o filme, mesmo depois de morta. Uma mulher marcada pelo passado que tentou (em vão) ao longo da vida se esgueirar das marcas da violência e seguir adiante. Fausta é uma mulher que tenta recobrar seu lugar no mundo e libertar-se do passado que ela própria não viveu. Os traumas são fortes de tal forma que para se proteger do mundo introduziu uma batata na vagina para evitar ser violentada como sua mãe foi. A relação da protagonista com o tubérculo tem uma simbologia forte. Além de ser surreal a situação da protagonista, a relação do povo peruano com esse alimento é intrínseca. Batatas são uma grande fonte de alimentação dos peruanos. Nesse sentido, é da própria terra, mãe de todos em última instância, que Fausta busca um escudo para proteger-se do opressor. Ela busca no feminino a proteção contra o masculino ameaçador. Outro personagem feminino forte, colocado no outro lado do cabo de tensão social retratado, é a limenha abastada com quem Fausta vai trabalhar como empregada doméstica para poder pagar o funeral da mãe. Ela representa o nicho socialmente oposto ao de Fausta, mas igualmente oprimido. Afinal, todas são filhas da mesma terra, feitas do mesmo barro.
O sofrimento e a dor de Fausta são o de um povo inteiro, causados pela instabilidade social e política de uma nação, é o grande mote e pano de fundo da trama. Mas o filme é mais que isto. É um filme que gira entorno de revezes e de inúmeras (im)possibilidades de amor: o amor da mãe pela filha e a tentativa de protegê-la, mesmo que a castrando, e principalmente da busca da própria protagonista, o que ela somente compreenderá quando descobrir seus subterrâneos e conseguir definir-se. O revez de Fausta é libertar-se. Motivada pela morte da mãe a enfrentar o mundo exterior e principalmente o opressor imagético (masculino) criado em torno dela ao longo da vida, ela lança-se na busca por novos significados para o mundo e para si mesma. E expurga ao longo da trama, através do confronto com o mundo exterior, seus medos, sua miséria e seus dilemas. Fausta representa a libertação - ou pelo menos uma árdua tentativa de liberdade - de um povo de seu passado de sofrimento.
esta muy bien elaborado este comentario.
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