quarta-feira, 29 de junho de 2011

RECOMEÇOS

Rafael Perez

"Depois de todas as tempestades e naufrágios, o que fica de mim  é cada vez mais essencial e verdadeiro."
(Caio Fernando Abreu)

A cada dia a vida me surpreende de uma forma diferente. São nuances, sutilezas, delicadezas quase imperceptíveis, em meio a asperezas e brutalidade. Em vários momentos, imerso em sofrimento, já pensei nos desígnios de Deus para mim e nos desafios que o destino me reserva. Às vezes a vida se torna pesada, dolorosa e não consigo ver saídas possíveis. Mas sempre é possível recomeçar por outro caminho. Tateando no escuro, quando menos espero, acho uma luz. E essa luz me guia até a porta. De alguma forma inexplicável (ou nem tanto) sou levado até essa chama. E tenho encontrado pelo caminho chamas tão fortes, tão intensas! Às vezes parece um tapa na cara, quando penso que não vai dar certo e não vou encontrar um rumo, a vida vem e diz “hey, acorda, a resposta está na tua cara!

Acredito, sinceramente, no destino. Não é totalmente ao acaso que sou colocado (ou me coloco?) em determinadas situações, que chego a determinados lugares, que entro na vida de algumas pessoas e, principalmente, que recebo em minha vida determinadas pessoas. Tenho esses sentimentos em relação a quase todas as situações. Não sou muito crédulo no poder do “acaso”. Cultivo com carinho essas chamas que foram colocadas no meu caminho. Porque sei que podem ser doces companheiras de jornada, ao longo de uma vida inteira ou por apenas um dia.

Isso me lembra uma história que ouvi esses dias, de uma dessas pessoas especiais que quero levar para sempre vida afora, que era uma confissão linda sobre um desses encontros de almas. Essa pessoa contava sobre uma moça que conheceu, em uma viagem. Ambos viviam, coincidentemente, na mesma cidade. Durante a viagem foram companheiros inseparáveis. A viagem acabou, cada um tomou seu rumo, continuaram vivendo na mesma cidade, porém não se cruzaram mais pelas esquinas da vida. Mas a história que tiveram nessa viagem deixou marcas indeléveis em seus corações, laços profundos de amor e amizade. Fiquei comovido com o relato, principalmente porque veio de uma pessoa encantadoramente sensível. E isso me fez pensar que o que faz a vida valer a pena são esses fugazes momentos de felicidade, é poder partilhar com outro ser humano sentimentos puros e verdadeiros. Pelo tempo que for. Porque nunca é muito ou pouco, o tempo é sempre o exato necessário.

Vejo o destino como uma folha em branco. Ao longo da jornada a gente adquire alguns lápis pastéis coloridos, algumas tintas. Podemos desenhar o que quisermos. Alguns desenhos não dão certo e tentamos apagá-los, mas o papel fica sempre marcado. Então pintamos algo por cima, mudando as formas, pressionando mais o lápis num canto, “hachurando” em outro, damos pinceladas aleatórias, até que o desenho faça sentido.

Meus desenhos normalmente são abstratos. Mas sempre tem algum traço com o qual posso conferir forma definida, tentando transformar meu desenho em algo real e vivo. Sonho em fazer os desenhos saírem do papel. E lembro de uma propaganda antiga da Faber Castel, com a música Aquarela, do Toquinho. Quero que meus desenhos dancem no ar. Quero que tenham emoção e façam as pessoas felizes. Como algumas me fazem.

A MAIOR DOR DO MUNDO

Raphael Perez - Couple Hugging, 1998, Oil on canvas


“Todos sabemos que cada dia que nasce é o primeiro para uns e será o último para outros e que, para a maioria, é só um dia mais.”
(José Saramago)

O dia havia amanhecido diferente. Mas ele não sabia o que era, porque não tinha  tamanha sensibilidade. Achava que era somente mais um dia de incertezas e silêncios estéreis. Nesse dia qualquer, no meio da rua, desarmado e desamparado, recebeu a notícia que jamais imaginou receber. Aquele a quem dedicava seus dias, suas noites, seus risos e seus silêncios, com quem tentava tecer sonhos e construir realidades, que dava certo sentido ao seu destino insólito, preenchendo lacunas, e que havia sido escolhido para ser chamado de “companheiro”, havia partido.

Ele estava devastado. Tinha vontade de gritar para o mundo sua dor, como se dessa forma ela se esvaísse em si mesma e se perdesse no universo. Perder uma das pessoas que mais amou era algo que não tinha nome e ultrapassava qualquer racionalidade.  A partir daquele dia, e para o resto da vida, seu companheiro seria apenas uma lembrança sofrida que com o passar do tempo seria no peito uma saudade fina de um passado que foi presente e não chegou a ser futuro. 

Desesperadamente correu ao encontro do seu companheiro, como se precisasse comprovar que aquilo tudo que estava acontecendo era um sonho ou um engano. Refez os trajetos que tantas vezes fizeram juntos, nos dias ensolarados que viveram. Cada metro percorrido era visto com estranheza e incredulidade. Numa espécie de transe, imerso em lágrimas que brotavam vorazes e rolavam pelas faces ressecadas até se perderem entre os fios da barba mal feita, com a boca amarga e seca e uma dor na altura do plexo solar, chegou ao local onde estava seu tão caro companheiro. Paralisado, aos pés de um corpo sem vida, que era uma vaga lembrança do seu amor, viu-se mais uma vez completamente sozinho. Havia perdido seu porto seguro, sua referência na cidade (e no mundo) onde viviam. Já havia aprendido a conviver com a perda do que continuava em algum sentido, mesmo estrito, vivo, mas perder algo que teve a vida inexoravelmente esvaída  era algo que causava uma dor diferente. Parte de sua própria vida havia sido ceifada naquela hora, de forma abrupta, repentina, brutal, estúpida. Era como se tivessem lhe arrancado os braços, as pernas, os olhos, o coração.

Eles tiveram uma história breve e intensa. Estreitaram laços profundos de amizade, acima de tudo. Eram companheiros para todas as horas. Conquistaram um reino, invadiram o castelo, enfrentaram dragões, os monstros do fosso, tentaram salvar a princesa, aspiravam ser Cavaleiros do Rei, poliam suas armaduras com orgulho após as batalhas e no fim de cada dia repousavam nos braços um do outro. Eram brandos, mas poderiam ser duros quando necessário. E desejavam-se mutuamente um bem enorme. Estavam perto quando o outro fraquejava e ofereciam colo quando era inevitável chorar. Tentaram, sem muito sucesso, construir uma vida juntos, aos trancos e com as inúmeras limitações que tinham.

Carregando no peito um baú imenso de lembranças e saudades ele chorou seu morto com as poucas forças que tinha, sem conseguir chegar muito próximo dos restos daquele a quem confessara o amor mais puro que ja sentira. Por vezes perguntou ao infinito, olhando marejado para o céu, enquando soltava a fumaça do cigarro em um sopro seco, que Deus é esse que atende às súplicas por auxílio e quando os pedidos começam a ser atendidos, decide, a revelia, que havia bastado e dava um ponto final à vida.  

A vontade que tinha era de abraçar forte o seu morto. Queria abraçar-se naquele corpo sem vida e chorar a amargura imensa que estava sentindo. Mas não podia. Tinha que engolir o choro e sufocar sua dor de todos os que os cercavam naquela hora, vestidos  com carrancas repreensivas e estupefatas. Fugia da capela, corria para o estacionamento, e apoiado em uma árvore desabava seu pranto.

O sincero e verdadeiro amor que tiveram era quase secreto, quase proibido, embora seus olhos denunciassem ao mundo o que sentiam. E era bonito, honesto, autêntico e despertava em ambos o desejo mais íntimo de serem melhores. Para alguns, porém, eram invisíveis e o que existia entre eles era impronunciável. Mas a dor que sentia naquele momento em que estava prestes a enterrar seu morto era autêntica, intensa e tinha nome e voz. Inevitavelmente todos souberam o que estava acontecendo, quem eles eram e o que representavam um para o outro. E não conteve o pranto, mesmo em meio a olhares curiosos e desaprovadores.

Ele sepultou seu companheiro num fim de tarde cinzento, de um dia que talvez até tivesse sol. Aquele dia ficaria marcado para sempre em sua retina. Seria mais uma marca indelével em seu ser. Sabia que teria uma dor que carregaria no peito para sempre. Sabia também que sua vida deveria prosseguir. Que deveria reerguer-se e continuar vivendo. Essa era sua obrigação. Chegou em casa, na primeira e mais dolorosa noite em claro, cheirou travesseiros, pijamas, cobertores, procurou resquícios de vida entre os lençóis, chorou a escova de dentes sobre a pia, os copos ainda sujos, as bobagens guardadas na geladeira e nos armários,  guloseimas que devoravam assistindo filmes, o controle remoto sobre a cama, as memórias, os presentes, as lembranças, as dedicatórias, as confissões, as fotos. Chorou até se exaurir.

O dia seguinte rompeu pelas frestas da janela. Absolutamente lúcido e dilacerado recolheu e guardou todas as lembranças, tangíveis e intangíveis, no lugar mais especial, bonito e digno do seu coração. E esse era o lugar onde deveria ficar preservada a vida que tiveram. Porque era assim o amor que tinham. Porque era isso que ambos esperavam do outro.

Inteiro entrou. Inteiro saiu. As cicatrizes permaneceriam para sempre, indeléveis. E a vida seguiria seu rumo. Vez ou outra choramingava no colo de algum de seus queridos ou sozinho no quarto, deitado sobre o tapete em posição fetal, buscando conforto e tentando recobrar as forças. Encontrou outros seres pelo caminho que ajudaram a amainar a dor até que as feridas cicatrizassem completamente. Processou seu luto, viveu intensamente todas as emoções que surgiram. Ergueu-se, carregando seu companheiro na lembrança. E sobreviveu.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

DESIDERIUM OU DOS SIGNOS DO DESEJO

(Para ler ao som de Barbara, “La Solitude”)
“I sit in my chair
And filled with despair
There's no one could be so sad
With gloom everywhere
I sit and I stare
I know that I'll soon go mad”
(Billie Holiday – “Solitude”)


Abrem os olhos e recobram a consciência. Dormentes ainda, abandonam seus casulos. Olhos fundos. Quatro olheiras refletidas simultaneamente em espelhos suados de banheiros de claustro. Distantes, distintos, dispersos, diametrais. Escovam os dentes, lavam os rostos. Tentam espantar a sonolência que restou de mais uma noite mal dormida. Frescor matinal de hortelã e sabonete de lavanda barato. Vestem suas calças surradas e camisas puídas com a lembrança longínqua de alvura. Olham para si mesmos, na tentativa vã de resgatar aquela brancura de outrora, recordada a partir do branco que não há em suas vestes.

O ritual é rápido, porém metódico. Do quarto para o banheiro, do banheiro para o corredor, do corredor para a cozinha, agora invadida pelo cheiro de café passado, que misturado ao azedo do lixo acumulado invade como um soco seus estômagos vazios. As bocas secas e amargas de noites em claro, de incontáveis doses de conhaque de alcatrão e cigarros baratos em bares incertos, pensando bobagens, bebendo besteiras, salivam ao sabor imaginado do amargo quente do café. Bebem com avidez, não somente pelo tempo escasso que possuem, mas por tudo que lhes falta.

Desde crianças ouviram que o trabalho dignifica o homem. Talvez fosse o único resquício de dignidade que conseguiam manter e que os fazia acordar todas as manhãs. Com a mesma irreflexão metódica cumprem o destino que lhes foi imposto. Impregnados pelo hálito de hortelã, café, gengibre e cigarros imergem no caos cotidiano. Como prisioneiros de Auschwitz, em meio a outros condenados, enfileirados, rumam ao campo de extermínio. Seus corações se cansaram de tudo, mas ainda assim seguem, dia após dia, cumprindo deveres e realizando um fim predestinado.

A paisagem da janela do trem é sempre a mesma: o cinza dos prédios, a brutalidade, a indiferença. As mesmas asperezas de sempre, tingidas com tintas fortes. Como numa fotografia, um observa o sorriso largo e congelado do mendigo desdentado, enquanto o outro pensa, vendo os borrões cinzentos vistos da janela, em quanta beleza é possível descobrir na feiúra e até que ponto é possível encontrar luz nas sombras.

Embora diametralmente opostos, tanto física quando existencialmente, parecem “plasmados”, termo que um deles certamente usaria para descrevê-los, embora sejam completamente desconhecidos. Algo indefinido e inominado ecoa no peito de cada um. Simultaneamente saídos do vórtice de pensamentos encadeados, desembarcam em suas respectivas estações. O calor é nauseante. Mercado público. Tumulto. Bancas de peixes, de pastéis fritos, de hortaliças, mendigos, ambulantes, vozes dissonantes, desvalidos de toda sorte. Caminham em meio à multidão. Todos em volta são iguais entre si e iguais a eles, em algum sentido.

Cotidianidades: Os pensamentos cessam. Um entra no grande prédio de escritórios. Saguão. Elevador. Quinto andar, por favor. Corredor. Recepção. Sala. Pára em frente à mesa. Suspira profundamente. Deseja bom dia às pessoas da sala, por educação e cordialidade. É preciso, afinal. Por tudo que faz, pensa e diz, sabe que todos o consideram “estranho”. Veste sua armadura e mergulha na burocracia que o dia reserva. Sufoca-se. Há tempos. A visão fica turva. Apanha um café e procura os cigarros amassados no bolso da calça desbotada. Entre um gole e uma tragada, que lhe chegam como uma bênção, tenta lembrar a frase de um samba antigo de Noel. Como era mesmo? Batuca na perna: “Viver alegre hoje é preciso / Conserva sempre o teu sorriso.” Era mais uma fuga para seu mundo particular.

Em um ponto não muito distante dali, o outro caminha pensando naquele sorriso largo e desdentado. “Será perigoso a gente ser feliz?”, pergunta-se, cantarolando a música que surge em sua mente. Traduzido em música, não sabe se é triste ou se apenas decora o seu papel, só sabe que queria aprender a não andar com os pés no chão. Puxa da bolsa de lona lascas de gengibre. Mastiga-as e respira profundamente três vezes. Entoa mentalmente um mantra que aprendera com uma amiga que viveu na Índia. É o mais próximo que chegou do Oriente. Postura. Concentração. Motivação. “Entrego, confio, aceito, agradeço.” Nada adiantou. Pensava na alegria quase patológica e perturbadora daquele rosto sofrido de sorriso largo. Pensava no que havia sido reservado para ele no futuro. De olhos semicerrados, respira profundamente. “Diz se é perigoso a gente ser feliz.” São tantos pensamentos confusos simultâneos que se sente dissipado em fragmentos impalpáveis. Percebeu-se só mais uma vez. E fugiu. Caminhando pelas ruas de arborizadas do bairro tranqüilo, mergulhou nas próprias emanações. Por alguns breves instantes foi consumido pela realidade interior, que talvez fosse a única verdadeira. “Sim, me leva para sempre, Beatriz / Me ensina a não andar com os pés no chão.” Fechou os olhos. Riu de canto.

Finalmente chegou ao pequeno estúdio, seu maior refúgio. Levantou a cortina, cuidadosamente organizou suas obras na calçada. E esperou. Meio atabalhoado, respirou profundamente. Pranayama, pensa. “Inspira prana, expira toxina. Sete vezes, o número da perfeição.” Tentava colocar nos lábios um sorriso inexistente. Desenvolveu ao longo dos anos uma forma própria de resistir às asperezas exteriores. Imaginava-se outra pessoa, em outro lugar. Ficava horas parado em frente à grande janela envidraçada, vendo o tempo ruir, entre incensos, telas e tintas. Ver o sol entrar pela janela, esgueirado entre as árvores e ouvir o canto dos pássaros sempre foi seu maior deleite naquele lugar. Revivia sua vida toda, ou vivia uma vida que não tinha, relembrava seu passado (que não tinha árvores nem pássaros) e construía mundos perfeitos. E quando o ruído raivoso dos lobos lá fora cessava, enchia-se de realidade novamente, vestia sua armadura e deixava a vida em suspenso.

Eram seres incompletos. Intrínseca e inexoravelmente. Como os andróginos seres originários cindidos por castigo de Zeus e condenados a viver vagando pelo mundo em busca da outra metade que os completaria novamente, fadados a desejarem eternamente a completude perdida. Essa incompletude visível aos demais não era visível a eles próprios. Não sentiam claramente essa falta, por terem sido sempre solitários, secos, ocos. Sentiam o desejo, mas não reconheciam a falta da parte perdida.

Meio-dia. Sol de janeiro. Dourado do sol contra o negro do asfalto quase em brasa. Verão fora, inverno dentro. Gente frenética e cinza se debatendo pelas ruas e calçadas. As bocas secas, os estômagos doloridos, as peles viscosas. Um tirou o avental manchado de tinta, fechou a cortina de ferro da loja e saiu pela rua arborizada. O outro tirou a gravata, fechou a sala e entrou no elevador.

Caminham pela mesma rua, mas vindos de direções opostas. O sol abrasivo batendo nas nucas. Convergências. Avistam a fachada vermelha, branca e dourada do restaurante. O salão está lotado. Resignados, aguardam lado a lado no amplo balcão de fórmica. Uma água. Um suco. Avistam uma mesa vaga. Ambos correm. Param frente a frente. Olham a mesa, olham-se nos olhos. Dois lugares. Sorriem timidamente, assentindo com quase cumplicidade. O mesmo sorriso amarelo de constrangimento, lábios ressecados, dentes amarelos de cigarros, cafés e solidão.

Não dizem nada, apenas sentam-se. Trocam olhares breves e algumas palavras de cortesia. Banalidades superficiais com profundezas abissais nas entrelinhas. Não era necessário falar quase nada. O silêncio de dentro tomou forma. Assustador. Suficiente. Encantador. Talvez conseguissem ler o que estava gravado nas retinas do outro. E por isso merecessem salvação. O mesmo olhar negro e triste emoldurado por olheiras antigas. O mesmo cansaço.

Como num estalar de dedos ao final de uma sessão de hipnose, despertam. É tarde. Despedem-se. Retornam. Avenida. Prédio. Elevador. Sala. Gravata. Rua. Árvores. Cortina de ferro. Avental. Mas algo havia ficado naquela mesa do restaurante e algo estava sendo carregado por cada um deles.

Mais uma jornada sem glória chega ao fim. Com o sentimento nítido de terem cumprido seus desígnios sem mérito afundam as cabeças exaustas nos travesseiros. Não conseguem dormir. Em meio ao mofo e às rachaduras do teto o rosto do outro surge num holograma. Corações indefinidos, afoitos, incertos. Foram invadidos pela ausência do outro.

No dia seguinte o ciclo recomeça. Mas desta vez, antes do ritual matinal, surge uma palpitação desconhecida e uma imagem: dois olhos negros. Mas o tempo invade o quarto e a imagem se desfaz. Prosseguem, protocolares. Mas algo havia mudado para sempre. Sem medo, continuam. Iniciáticos, materializaram a busca. O desejo, de forma fatalista, tinha um objeto definido. Tentam reviver lembranças, recompor imagens. Na hora do almoço refazem trajetos, buscam pistas e sinais. Vagam pelas ruas, buscando o outro (e a si mesmos) em cada esquina. Mas chovia naquele dia.


segunda-feira, 6 de junho de 2011

A IMPOSTURA DO AMOR

No início era apenas uma pontada fina no peito, uma fagulha que foi aumentando aos poucos, até se tornar uma bola de fogo ardente e incontrolável. Nas noites insones, esperava o sol nascer para que a vida cotidiana começasse e a dor abrandasse. Por um tempo funcionou. Depois, a dor foi se tornando mais presente, mais intensa e mais conhecida. Tornar a dor conhecida poderia até trazer algumas vantagens. Mas conhecer é também uma maldição. Não havia como voltar atrás após a revelação, como se o destino quisesse dar-lhe uma lição e mostra-lhe que a vida não é como gostaria que fosse. Aconteceu exatamente isso: Foi o fim da inocência.

Não havia, porém, pesar com o fim da inocência. Ele havia aprendido, a duras penas, a conviver com os escuros de si mesmo, embora não os conhecendo. Desenvolvera mecanismos para tatear no escuro em busca de luz. Foi essa busca pela luz que o levou por caminhos inimagináveis.

Não tinha muitos apegos materiais. Acumulou apenas alguns livros, alguns discos e um baú imenso de lembranças intangíveis. Disso tudo, apenas as lembranças jamais abandonaria pelo caminho, como fez com tantas outras coisas que se tornaram pesadas ao longo da jornada, embora elas próprias tenham se tornado um grande peso sobre seus ombros já curvados.

Desprovido desses apegos, se lançou num caminho sem volta. Foi em busca do que imaginava - ou supunha - ser esse fogo. Porque essa dor funda só poderia ter um significado em sua mente incauta: Amor. Mas não o amor da família ou dos amigos, que sentia ter e valorizava intensamente, tampouco o amor de folhetins, que sabia fantasioso. Era outro tipo de amor o que buscava. Aquele amor que arde, que dilacera, que não está no outro, mas é despertado por ele. Queria ser consumido por um sentimento que estava extravasando seu peito. E queria mais. Desejava partilhar esse sentimento, mesmo não sendo correspondido. Em última instância, mesmo inconscientemente, queria encontrar outra chama de igual intensidade e queria que tudo fosse consumido pelo calor e pela luz.

Olhando para o gole se si que restava na xícara de café frio e para suas cinzas depositadas no cinzeiro transbordado pensava nas utopias e distopias dos seus desejos insanos e grandiloqüentes. Perplexo. Insatisfeito. Então, resolveu colocar seu terno mais bonito e em uma manhã outonal de domingo, fria e ensolarada, caminhou sem rumo pelas ruas antigas e estreitas da cidade, onde o casario e os centenários plátanos formavam uma imensa barreira que bloqueava sua visão e aguçava sua imaginação. Carregava em um braço um pesado sobretudo de lã e em outra seu inseparável panamá, marca registrada. Os bicos finos dos sapatos pretos, lustrados com cuidado, reluziam ao sol e o solado de madeira deixava um som seco como rastro pelas ruas desertas de pedras desgastadas cobertas pelas folhas secas das árvores. Não sentiu cansaço. Talvez tivesse sentido certa ansiedade, traduzida em leves palpitações e sudorese. Ou talvez isso fosse apenas resultado do esforço físico. Caminhou decidido, como se estivesse indo ao encontro de algo esperado.


A tarde caiu, o sol se pôs e um vento frio começou a roçar em seu rosto pálido. Como se tivesse saído de um transe, deparou-se, quase tonto, com o velho sobrado onde morava desde a infância. Parcimoniosamente abriu o pesado portão de ferro, subiu a escadaria, abriu a porta de arabescos entalhados cobertos de teias de aranha. Os únicos sons audíveis eram os dos seus passos e o da porta rangendo ao ser aberta. Os sons inaudíveis, entretanto, eram infinitos e ensurdecedores. Mas somente ele era capaz de ouvi-los ou incapaz de sufocá-los. Atravessou a penumbra do hall, soltou o casaco e o chapéu em uma cadeira, subiu para o quarto, afrouxou a gravata de seda, sentou-se confortavelmente em sua velha poltrona de veludo, descalçou-se e colocou os pés de molho em uma bacia de alumínio com água e ervas aromáticas, previamente colocada em frente à poltrona, como costumava fazer sempre ao final dessas caminhadas, suspirou profundamente e preparou-se para mais uma noite.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

(IM)PERMANÊNCIA


“O nascimento de um homem é o nascimento de sua dor. Quanto mais ele vive, mais estúpido se torna, porque sua ansiedade para evitar a morte inevitável torna-se mais e mais aguda. Que amargura! Ele vive por aquilo que está sempre fora do seu alcance! Sua sede de sobreviver no futuro faz com seja incapaz de viver no presente.” (Chuang-Tsu)


Por que é tão difícil praticarmos a liberdade de pensar e sentir? Passamos a vida tentando realizar sonhos, concretizando planos e cumprindo metas. Somos impelidos a desejar coisas, como se fosse uma maldição não termos desejos materiais. Quando crianças, temos todo um aparato de regras impostas pelos adultos que moldam e condicionam, que selam nosso destino. Já na vida adulta, temos que ter um amor maior que tudo, fiel, devotado, subserviente, apenas para começar. Daqueles de novela. Casamos, constituímos uma família, temos filhos, construímos um lar, conquistamos uma posição social. Desejamos, então, uma casa maior, férias, a troca do carro, planejamos o futuro dos nossos filhos, programamos nossa aposentadoria. Reproduzimos o condicionamento determinado desde a infância. Estamos sempre tentando estabelecer uma ordem para o cosmos. Porque somente assim o mundo fará sentido. Não penso que não devemos ter sonhos ou seguir regras, sejam elas quais forem. Mas devemos pensar sobre o que realmente nos fará felizes. O que em nossas buscas diárias é realmente nosso e o que é, de certa forma, imposto ou determinado pelo outro. Nossos sofrimentos orbitam a eterna busca pelo que não temos. Queremos carros do ano, casas de praia, amores eternos, paixões avassaladoras, orgasmos infinitos, o emprego dos sonhos.

Paralelo ao sofrimento gerado pelo desejo do não conquistado, temos o sofrimento pela manutenção do que precariamente conquistamos, como se toda fonte de nossa virtude e felicidade estivesse nesses bens acumulados. Fomos condenados por Zeus a desejar eternamente, na nossa incompletude essencial, e quando conquistamos imediatamente desejamos outras coisas ou mais das coisas conquistadas, num ciclo que nunca finda.

Não sou contra o acúmulo de bens, pelo contrário, e compreendo que esses bens acumulados são a representação de nosso virtuosismo em conquistar num certo sentido. Vivemos como cavaleiros medievais em uma cruzada de consumo, como se em cada bem encontrássemos a nós mesmos. O que acho tristemente sintomático é que nos distanciamos das coisas mais verdadeiras, dos sentimentos mais profundos. Esquecemos de olhar para dentro de nós mesmos para descobrirmos quem realmente somos. Não olhamos para o sofrimento alheio, não tentamos diminuir em nada a dor do outro, queremos apenas diminuir a nossa própria miséria, humana e primitiva. E não conseguimos.

Vivemos uma vida "das-oito-às-dezoito" e nos descuidamos de encontrar significados profundos para nossas existências. Preocupamo-nos com nossas necessidades e nossas mazelas. Absortos em nossos gritos, não ouvimos nossa própria voz.

Freneticamente tentamos manter nossa zona de conforto, manter nossas conquistas do passado e conquistar outras terras no futuro. Viver no futuro (ou no passado) é cômodo porque desviamos nossa atenção das nossas mazelas atuais. E como não há nada que possamos fazer no passado ou no futuro, nos conformamos com as impossibilidades.

Quando conseguimos contemplar a mutabilidade de todas as coisas, boas ou ruins, conseguimos gerar compaixão e ver todos os eventos com desprendimento. É a velha máxima dos nossos avós: “não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe”. Se sei que o mal vai acabar, cedo ou tarde, encho meu coração de esperanças em um futuro melhor e trago essa esperança e a alegria de um futuro mais brando para suportar o sofrimento causado pelas ilusões do samsara. Por outro lado, se conseguimos compreender com profundidade que não há bem que dure para sempre, entendemos que precisamos agir com desapego porque não há nada que possamos fazer para evitar que as coisas boas terminem. Sofremos porque querermos que o mal acabe logo e sofremos porque não queremos que o bem acabe nunca.

Se você leu até aqui deve estar se perguntando: “Aonde ele quer chegar com essa conversa? Como vamos alcançar esse equilíbrio e essa dimensão da realidade?” Talvez o caminho seja a simplicidade. Nas coisas mais simples talvez esteja a chave, não é nos grandes feitos, nos grandes gestos, nos grandes gastos, mas nas cotidianidades. Perdemos tanto tempo tentando encontrar um grande sentido, uma grande sacada para que nossas vidas aqui se tornem menos medíocres, menos vazias, menos solitárias para somente então alcançarmos, finalmente, a compreensão de nossa existência nesta Terra, que não conseguimos ver o que está logo ali, após o que circunda nossos umbigos.