segunda-feira, 6 de junho de 2011

A IMPOSTURA DO AMOR

No início era apenas uma pontada fina no peito, uma fagulha que foi aumentando aos poucos, até se tornar uma bola de fogo ardente e incontrolável. Nas noites insones, esperava o sol nascer para que a vida cotidiana começasse e a dor abrandasse. Por um tempo funcionou. Depois, a dor foi se tornando mais presente, mais intensa e mais conhecida. Tornar a dor conhecida poderia até trazer algumas vantagens. Mas conhecer é também uma maldição. Não havia como voltar atrás após a revelação, como se o destino quisesse dar-lhe uma lição e mostra-lhe que a vida não é como gostaria que fosse. Aconteceu exatamente isso: Foi o fim da inocência.

Não havia, porém, pesar com o fim da inocência. Ele havia aprendido, a duras penas, a conviver com os escuros de si mesmo, embora não os conhecendo. Desenvolvera mecanismos para tatear no escuro em busca de luz. Foi essa busca pela luz que o levou por caminhos inimagináveis.

Não tinha muitos apegos materiais. Acumulou apenas alguns livros, alguns discos e um baú imenso de lembranças intangíveis. Disso tudo, apenas as lembranças jamais abandonaria pelo caminho, como fez com tantas outras coisas que se tornaram pesadas ao longo da jornada, embora elas próprias tenham se tornado um grande peso sobre seus ombros já curvados.

Desprovido desses apegos, se lançou num caminho sem volta. Foi em busca do que imaginava - ou supunha - ser esse fogo. Porque essa dor funda só poderia ter um significado em sua mente incauta: Amor. Mas não o amor da família ou dos amigos, que sentia ter e valorizava intensamente, tampouco o amor de folhetins, que sabia fantasioso. Era outro tipo de amor o que buscava. Aquele amor que arde, que dilacera, que não está no outro, mas é despertado por ele. Queria ser consumido por um sentimento que estava extravasando seu peito. E queria mais. Desejava partilhar esse sentimento, mesmo não sendo correspondido. Em última instância, mesmo inconscientemente, queria encontrar outra chama de igual intensidade e queria que tudo fosse consumido pelo calor e pela luz.

Olhando para o gole se si que restava na xícara de café frio e para suas cinzas depositadas no cinzeiro transbordado pensava nas utopias e distopias dos seus desejos insanos e grandiloqüentes. Perplexo. Insatisfeito. Então, resolveu colocar seu terno mais bonito e em uma manhã outonal de domingo, fria e ensolarada, caminhou sem rumo pelas ruas antigas e estreitas da cidade, onde o casario e os centenários plátanos formavam uma imensa barreira que bloqueava sua visão e aguçava sua imaginação. Carregava em um braço um pesado sobretudo de lã e em outra seu inseparável panamá, marca registrada. Os bicos finos dos sapatos pretos, lustrados com cuidado, reluziam ao sol e o solado de madeira deixava um som seco como rastro pelas ruas desertas de pedras desgastadas cobertas pelas folhas secas das árvores. Não sentiu cansaço. Talvez tivesse sentido certa ansiedade, traduzida em leves palpitações e sudorese. Ou talvez isso fosse apenas resultado do esforço físico. Caminhou decidido, como se estivesse indo ao encontro de algo esperado.


A tarde caiu, o sol se pôs e um vento frio começou a roçar em seu rosto pálido. Como se tivesse saído de um transe, deparou-se, quase tonto, com o velho sobrado onde morava desde a infância. Parcimoniosamente abriu o pesado portão de ferro, subiu a escadaria, abriu a porta de arabescos entalhados cobertos de teias de aranha. Os únicos sons audíveis eram os dos seus passos e o da porta rangendo ao ser aberta. Os sons inaudíveis, entretanto, eram infinitos e ensurdecedores. Mas somente ele era capaz de ouvi-los ou incapaz de sufocá-los. Atravessou a penumbra do hall, soltou o casaco e o chapéu em uma cadeira, subiu para o quarto, afrouxou a gravata de seda, sentou-se confortavelmente em sua velha poltrona de veludo, descalçou-se e colocou os pés de molho em uma bacia de alumínio com água e ervas aromáticas, previamente colocada em frente à poltrona, como costumava fazer sempre ao final dessas caminhadas, suspirou profundamente e preparou-se para mais uma noite.

Um comentário:

  1. Impressionada com teus adjetivos, senti-me mais uma vez inquieta com a impostura desse sentimento que nos leva pra não sei onde! Tem uma tensão poética nos teus conflitos!

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