sexta-feira, 10 de junho de 2011

DESIDERIUM OU DOS SIGNOS DO DESEJO

(Para ler ao som de Barbara, “La Solitude”)
“I sit in my chair
And filled with despair
There's no one could be so sad
With gloom everywhere
I sit and I stare
I know that I'll soon go mad”
(Billie Holiday – “Solitude”)


Abrem os olhos e recobram a consciência. Dormentes ainda, abandonam seus casulos. Olhos fundos. Quatro olheiras refletidas simultaneamente em espelhos suados de banheiros de claustro. Distantes, distintos, dispersos, diametrais. Escovam os dentes, lavam os rostos. Tentam espantar a sonolência que restou de mais uma noite mal dormida. Frescor matinal de hortelã e sabonete de lavanda barato. Vestem suas calças surradas e camisas puídas com a lembrança longínqua de alvura. Olham para si mesmos, na tentativa vã de resgatar aquela brancura de outrora, recordada a partir do branco que não há em suas vestes.

O ritual é rápido, porém metódico. Do quarto para o banheiro, do banheiro para o corredor, do corredor para a cozinha, agora invadida pelo cheiro de café passado, que misturado ao azedo do lixo acumulado invade como um soco seus estômagos vazios. As bocas secas e amargas de noites em claro, de incontáveis doses de conhaque de alcatrão e cigarros baratos em bares incertos, pensando bobagens, bebendo besteiras, salivam ao sabor imaginado do amargo quente do café. Bebem com avidez, não somente pelo tempo escasso que possuem, mas por tudo que lhes falta.

Desde crianças ouviram que o trabalho dignifica o homem. Talvez fosse o único resquício de dignidade que conseguiam manter e que os fazia acordar todas as manhãs. Com a mesma irreflexão metódica cumprem o destino que lhes foi imposto. Impregnados pelo hálito de hortelã, café, gengibre e cigarros imergem no caos cotidiano. Como prisioneiros de Auschwitz, em meio a outros condenados, enfileirados, rumam ao campo de extermínio. Seus corações se cansaram de tudo, mas ainda assim seguem, dia após dia, cumprindo deveres e realizando um fim predestinado.

A paisagem da janela do trem é sempre a mesma: o cinza dos prédios, a brutalidade, a indiferença. As mesmas asperezas de sempre, tingidas com tintas fortes. Como numa fotografia, um observa o sorriso largo e congelado do mendigo desdentado, enquanto o outro pensa, vendo os borrões cinzentos vistos da janela, em quanta beleza é possível descobrir na feiúra e até que ponto é possível encontrar luz nas sombras.

Embora diametralmente opostos, tanto física quando existencialmente, parecem “plasmados”, termo que um deles certamente usaria para descrevê-los, embora sejam completamente desconhecidos. Algo indefinido e inominado ecoa no peito de cada um. Simultaneamente saídos do vórtice de pensamentos encadeados, desembarcam em suas respectivas estações. O calor é nauseante. Mercado público. Tumulto. Bancas de peixes, de pastéis fritos, de hortaliças, mendigos, ambulantes, vozes dissonantes, desvalidos de toda sorte. Caminham em meio à multidão. Todos em volta são iguais entre si e iguais a eles, em algum sentido.

Cotidianidades: Os pensamentos cessam. Um entra no grande prédio de escritórios. Saguão. Elevador. Quinto andar, por favor. Corredor. Recepção. Sala. Pára em frente à mesa. Suspira profundamente. Deseja bom dia às pessoas da sala, por educação e cordialidade. É preciso, afinal. Por tudo que faz, pensa e diz, sabe que todos o consideram “estranho”. Veste sua armadura e mergulha na burocracia que o dia reserva. Sufoca-se. Há tempos. A visão fica turva. Apanha um café e procura os cigarros amassados no bolso da calça desbotada. Entre um gole e uma tragada, que lhe chegam como uma bênção, tenta lembrar a frase de um samba antigo de Noel. Como era mesmo? Batuca na perna: “Viver alegre hoje é preciso / Conserva sempre o teu sorriso.” Era mais uma fuga para seu mundo particular.

Em um ponto não muito distante dali, o outro caminha pensando naquele sorriso largo e desdentado. “Será perigoso a gente ser feliz?”, pergunta-se, cantarolando a música que surge em sua mente. Traduzido em música, não sabe se é triste ou se apenas decora o seu papel, só sabe que queria aprender a não andar com os pés no chão. Puxa da bolsa de lona lascas de gengibre. Mastiga-as e respira profundamente três vezes. Entoa mentalmente um mantra que aprendera com uma amiga que viveu na Índia. É o mais próximo que chegou do Oriente. Postura. Concentração. Motivação. “Entrego, confio, aceito, agradeço.” Nada adiantou. Pensava na alegria quase patológica e perturbadora daquele rosto sofrido de sorriso largo. Pensava no que havia sido reservado para ele no futuro. De olhos semicerrados, respira profundamente. “Diz se é perigoso a gente ser feliz.” São tantos pensamentos confusos simultâneos que se sente dissipado em fragmentos impalpáveis. Percebeu-se só mais uma vez. E fugiu. Caminhando pelas ruas de arborizadas do bairro tranqüilo, mergulhou nas próprias emanações. Por alguns breves instantes foi consumido pela realidade interior, que talvez fosse a única verdadeira. “Sim, me leva para sempre, Beatriz / Me ensina a não andar com os pés no chão.” Fechou os olhos. Riu de canto.

Finalmente chegou ao pequeno estúdio, seu maior refúgio. Levantou a cortina, cuidadosamente organizou suas obras na calçada. E esperou. Meio atabalhoado, respirou profundamente. Pranayama, pensa. “Inspira prana, expira toxina. Sete vezes, o número da perfeição.” Tentava colocar nos lábios um sorriso inexistente. Desenvolveu ao longo dos anos uma forma própria de resistir às asperezas exteriores. Imaginava-se outra pessoa, em outro lugar. Ficava horas parado em frente à grande janela envidraçada, vendo o tempo ruir, entre incensos, telas e tintas. Ver o sol entrar pela janela, esgueirado entre as árvores e ouvir o canto dos pássaros sempre foi seu maior deleite naquele lugar. Revivia sua vida toda, ou vivia uma vida que não tinha, relembrava seu passado (que não tinha árvores nem pássaros) e construía mundos perfeitos. E quando o ruído raivoso dos lobos lá fora cessava, enchia-se de realidade novamente, vestia sua armadura e deixava a vida em suspenso.

Eram seres incompletos. Intrínseca e inexoravelmente. Como os andróginos seres originários cindidos por castigo de Zeus e condenados a viver vagando pelo mundo em busca da outra metade que os completaria novamente, fadados a desejarem eternamente a completude perdida. Essa incompletude visível aos demais não era visível a eles próprios. Não sentiam claramente essa falta, por terem sido sempre solitários, secos, ocos. Sentiam o desejo, mas não reconheciam a falta da parte perdida.

Meio-dia. Sol de janeiro. Dourado do sol contra o negro do asfalto quase em brasa. Verão fora, inverno dentro. Gente frenética e cinza se debatendo pelas ruas e calçadas. As bocas secas, os estômagos doloridos, as peles viscosas. Um tirou o avental manchado de tinta, fechou a cortina de ferro da loja e saiu pela rua arborizada. O outro tirou a gravata, fechou a sala e entrou no elevador.

Caminham pela mesma rua, mas vindos de direções opostas. O sol abrasivo batendo nas nucas. Convergências. Avistam a fachada vermelha, branca e dourada do restaurante. O salão está lotado. Resignados, aguardam lado a lado no amplo balcão de fórmica. Uma água. Um suco. Avistam uma mesa vaga. Ambos correm. Param frente a frente. Olham a mesa, olham-se nos olhos. Dois lugares. Sorriem timidamente, assentindo com quase cumplicidade. O mesmo sorriso amarelo de constrangimento, lábios ressecados, dentes amarelos de cigarros, cafés e solidão.

Não dizem nada, apenas sentam-se. Trocam olhares breves e algumas palavras de cortesia. Banalidades superficiais com profundezas abissais nas entrelinhas. Não era necessário falar quase nada. O silêncio de dentro tomou forma. Assustador. Suficiente. Encantador. Talvez conseguissem ler o que estava gravado nas retinas do outro. E por isso merecessem salvação. O mesmo olhar negro e triste emoldurado por olheiras antigas. O mesmo cansaço.

Como num estalar de dedos ao final de uma sessão de hipnose, despertam. É tarde. Despedem-se. Retornam. Avenida. Prédio. Elevador. Sala. Gravata. Rua. Árvores. Cortina de ferro. Avental. Mas algo havia ficado naquela mesa do restaurante e algo estava sendo carregado por cada um deles.

Mais uma jornada sem glória chega ao fim. Com o sentimento nítido de terem cumprido seus desígnios sem mérito afundam as cabeças exaustas nos travesseiros. Não conseguem dormir. Em meio ao mofo e às rachaduras do teto o rosto do outro surge num holograma. Corações indefinidos, afoitos, incertos. Foram invadidos pela ausência do outro.

No dia seguinte o ciclo recomeça. Mas desta vez, antes do ritual matinal, surge uma palpitação desconhecida e uma imagem: dois olhos negros. Mas o tempo invade o quarto e a imagem se desfaz. Prosseguem, protocolares. Mas algo havia mudado para sempre. Sem medo, continuam. Iniciáticos, materializaram a busca. O desejo, de forma fatalista, tinha um objeto definido. Tentam reviver lembranças, recompor imagens. Na hora do almoço refazem trajetos, buscam pistas e sinais. Vagam pelas ruas, buscando o outro (e a si mesmos) em cada esquina. Mas chovia naquele dia.


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