quarta-feira, 29 de junho de 2011

A MAIOR DOR DO MUNDO

Raphael Perez - Couple Hugging, 1998, Oil on canvas


“Todos sabemos que cada dia que nasce é o primeiro para uns e será o último para outros e que, para a maioria, é só um dia mais.”
(José Saramago)

O dia havia amanhecido diferente. Mas ele não sabia o que era, porque não tinha  tamanha sensibilidade. Achava que era somente mais um dia de incertezas e silêncios estéreis. Nesse dia qualquer, no meio da rua, desarmado e desamparado, recebeu a notícia que jamais imaginou receber. Aquele a quem dedicava seus dias, suas noites, seus risos e seus silêncios, com quem tentava tecer sonhos e construir realidades, que dava certo sentido ao seu destino insólito, preenchendo lacunas, e que havia sido escolhido para ser chamado de “companheiro”, havia partido.

Ele estava devastado. Tinha vontade de gritar para o mundo sua dor, como se dessa forma ela se esvaísse em si mesma e se perdesse no universo. Perder uma das pessoas que mais amou era algo que não tinha nome e ultrapassava qualquer racionalidade.  A partir daquele dia, e para o resto da vida, seu companheiro seria apenas uma lembrança sofrida que com o passar do tempo seria no peito uma saudade fina de um passado que foi presente e não chegou a ser futuro. 

Desesperadamente correu ao encontro do seu companheiro, como se precisasse comprovar que aquilo tudo que estava acontecendo era um sonho ou um engano. Refez os trajetos que tantas vezes fizeram juntos, nos dias ensolarados que viveram. Cada metro percorrido era visto com estranheza e incredulidade. Numa espécie de transe, imerso em lágrimas que brotavam vorazes e rolavam pelas faces ressecadas até se perderem entre os fios da barba mal feita, com a boca amarga e seca e uma dor na altura do plexo solar, chegou ao local onde estava seu tão caro companheiro. Paralisado, aos pés de um corpo sem vida, que era uma vaga lembrança do seu amor, viu-se mais uma vez completamente sozinho. Havia perdido seu porto seguro, sua referência na cidade (e no mundo) onde viviam. Já havia aprendido a conviver com a perda do que continuava em algum sentido, mesmo estrito, vivo, mas perder algo que teve a vida inexoravelmente esvaída  era algo que causava uma dor diferente. Parte de sua própria vida havia sido ceifada naquela hora, de forma abrupta, repentina, brutal, estúpida. Era como se tivessem lhe arrancado os braços, as pernas, os olhos, o coração.

Eles tiveram uma história breve e intensa. Estreitaram laços profundos de amizade, acima de tudo. Eram companheiros para todas as horas. Conquistaram um reino, invadiram o castelo, enfrentaram dragões, os monstros do fosso, tentaram salvar a princesa, aspiravam ser Cavaleiros do Rei, poliam suas armaduras com orgulho após as batalhas e no fim de cada dia repousavam nos braços um do outro. Eram brandos, mas poderiam ser duros quando necessário. E desejavam-se mutuamente um bem enorme. Estavam perto quando o outro fraquejava e ofereciam colo quando era inevitável chorar. Tentaram, sem muito sucesso, construir uma vida juntos, aos trancos e com as inúmeras limitações que tinham.

Carregando no peito um baú imenso de lembranças e saudades ele chorou seu morto com as poucas forças que tinha, sem conseguir chegar muito próximo dos restos daquele a quem confessara o amor mais puro que ja sentira. Por vezes perguntou ao infinito, olhando marejado para o céu, enquando soltava a fumaça do cigarro em um sopro seco, que Deus é esse que atende às súplicas por auxílio e quando os pedidos começam a ser atendidos, decide, a revelia, que havia bastado e dava um ponto final à vida.  

A vontade que tinha era de abraçar forte o seu morto. Queria abraçar-se naquele corpo sem vida e chorar a amargura imensa que estava sentindo. Mas não podia. Tinha que engolir o choro e sufocar sua dor de todos os que os cercavam naquela hora, vestidos  com carrancas repreensivas e estupefatas. Fugia da capela, corria para o estacionamento, e apoiado em uma árvore desabava seu pranto.

O sincero e verdadeiro amor que tiveram era quase secreto, quase proibido, embora seus olhos denunciassem ao mundo o que sentiam. E era bonito, honesto, autêntico e despertava em ambos o desejo mais íntimo de serem melhores. Para alguns, porém, eram invisíveis e o que existia entre eles era impronunciável. Mas a dor que sentia naquele momento em que estava prestes a enterrar seu morto era autêntica, intensa e tinha nome e voz. Inevitavelmente todos souberam o que estava acontecendo, quem eles eram e o que representavam um para o outro. E não conteve o pranto, mesmo em meio a olhares curiosos e desaprovadores.

Ele sepultou seu companheiro num fim de tarde cinzento, de um dia que talvez até tivesse sol. Aquele dia ficaria marcado para sempre em sua retina. Seria mais uma marca indelével em seu ser. Sabia que teria uma dor que carregaria no peito para sempre. Sabia também que sua vida deveria prosseguir. Que deveria reerguer-se e continuar vivendo. Essa era sua obrigação. Chegou em casa, na primeira e mais dolorosa noite em claro, cheirou travesseiros, pijamas, cobertores, procurou resquícios de vida entre os lençóis, chorou a escova de dentes sobre a pia, os copos ainda sujos, as bobagens guardadas na geladeira e nos armários,  guloseimas que devoravam assistindo filmes, o controle remoto sobre a cama, as memórias, os presentes, as lembranças, as dedicatórias, as confissões, as fotos. Chorou até se exaurir.

O dia seguinte rompeu pelas frestas da janela. Absolutamente lúcido e dilacerado recolheu e guardou todas as lembranças, tangíveis e intangíveis, no lugar mais especial, bonito e digno do seu coração. E esse era o lugar onde deveria ficar preservada a vida que tiveram. Porque era assim o amor que tinham. Porque era isso que ambos esperavam do outro.

Inteiro entrou. Inteiro saiu. As cicatrizes permaneceriam para sempre, indeléveis. E a vida seguiria seu rumo. Vez ou outra choramingava no colo de algum de seus queridos ou sozinho no quarto, deitado sobre o tapete em posição fetal, buscando conforto e tentando recobrar as forças. Encontrou outros seres pelo caminho que ajudaram a amainar a dor até que as feridas cicatrizassem completamente. Processou seu luto, viveu intensamente todas as emoções que surgiram. Ergueu-se, carregando seu companheiro na lembrança. E sobreviveu.

2 comentários:

  1. A maior dor do mundo é cheia de adjetivos. Mas o que alivia essa dor é a "saudade fina" que temos das pessoas que já se foram? E por mais que as cicatrizes sejam indeléveis, creio que a pior das cicatrizes seja a que fica da perda de alguém que não morre. Mas que precisamos fingir que morreu pra nós. Ao passo que fui lendo teu conto, pensei: é de morte física que ele está falando. Essa se `sobrevive´! Que lindo isso tudo daqui, meu querido. Apesar de dolorido e de forte, lindo!

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  2. Entendo que são dores diferentes. Talvez a dor de quem morre subjetivamente seja encoberta pela pulsão de vida que precisamos ter para sobreviver à essa pessoa. Seja por mágoa, raiva, despeito ou inevitabilidade. Perder quem se amou porque essa pessoa morre objetivamente é a dor da devastação gerada pela total impossibilidade objetiva do outro. É um processo de reaprender a andar sozinho porque estamos (pelo menos temporariamente) completamente sós. Sobreviver é isso, sobrevivermos aos nossos mortos, estejam eles vivos ou não. Obrigado por dividir teus pensamentos comigo.

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