segunda-feira, 14 de novembro de 2011

DO PÓ AO PÓ


"O tempo é que mostra o que realmente valeu a pena, o tempo nos ensina a esperar, o tempo apaga o efêmero e acaba com a dúvida."
Caio Fernando Abreu 

Queria pedir desculpas por fazer você esperar tanto tempo por mim. Sabe como são as noites de chuva nesta cidade. O trânsito fica trancado e é impossível chegar rápido a qualquer lugar. É mesmo? Que bom que você esperou pouco tempo. Vou lhe acompanhar no que está bebendo. O que é? Vodca? Sim, sem gelo, por favor. Você parece um pouco tenso, alisando a toalha branca puída que cobre esta mesa de madeira escura e pesada. Mesmo que você negue veementemente, conheço um pouco você, suas idiossincrasias e suas reações, embora não entenda porque você escolheu este lugar que ambos detestamos. Ah, sim, você acha neutro um lugar que ambos detestamos. Você e suas peculiaridades. Quando entrei, você foi a primeira – e única – pessoa que avistei. Meus olhos bateram direto em você. Era como se não existisse mais ninguém aqui. Você fica tão bonito com essa camisa branca, principalmente quando dobra as mangas deixando aparecer seu antebraço. Você sempre foi de compleição física melhor que a minha. Não, não estou reclamando ou criticando. É um elogio, aceite. Sim, lembro, comprei essa camisa para você naquela viagem que fiz sozinho porque você estava passando por uma daquelas crises criativas e preferia ficar em casa lendo livros de autoajuda e bebendo vinho sozinho, na tentativa (vã) de encontrar sentido para sua vida. Quando cheguei, vi que você alisava a toalha irrefletidamente, com esses grandes olhos negros parados no nada. Enquanto atravessava o salão quase vazio olhava para você, perdido em pensamentos, sentado aqui nesta mesa no fundo. Sim, eu sei que você estava pensando num monte de coisas que queria me dizer olhando nos meus olhos. Da mesma forma que sempre foi entre a gente, né? A gente sempre falou tudo um para o outro. Sempre fomos limpos, claros, transparentes. Que? Por que eu estou assim, verborrágico? Ah, desculpe-me. É que você estava tão calado que achei que eu poderia falar para preencher os vazios com algum assunto bobo, até que a gente entrasse realmente no assunto que me trouxe aqui. Rodeios. É verdade, você tem razão, se você me chamou aqui é porque tem mesmo coisas importantes para dizer, sem rodeios. Tudo bem, ficarei calado, embora seja sempre difícil para mim o vazio, seja ele qual for, principalmente quando esses silêncios são cheios de gritos sufocados. Estou, estou atento sim ao que você diz. Sempre estive. Não precisa me agredir, não estou fazendo pose de super equilibrado e super compreensivo. Ah, não é um julgamento o que você faz agora, é só uma leitura? Você está certo sim, eu tenho dificuldade de aceitar críticas, assim como tenho dificuldades em me ver errático e lidar com negativas e rejeições. Mas quando fico sozinho com meus pensamentos, consigo olhar-me no espelho e ver que você tinha razão, embora eu jamais admita publicamente. Estou desarmado agora, acredite. Queria mesmo lhe dar um abraço apertado e dizer que tudo vai ficar bem, que estamos apenas passando por uma fase ruim. Eu tenho meus problemas também e sei das suas dificuldades e dos seus limites, queria dizer que aceito você do jeito que você é, com seus erros, suas mancadas, porque gosto de você, porque quero que nossa vida continue, porque quero ser feliz ao seu lado e fazer você feliz, com as coisas simples do meu mundo. Não, não estou fazendo o superior e espiritualizado. Você sempre foi muito mais que eu. Pelo menos você sempre quis demonstrar muito mais todas as suas leituras de filosofias ocidentais e orientais, todos os seus retiros espirituais, todos os workshops e as vivências transcendentais que teve. Você já viu todos os filmes. Você acha a carne triste e já leu todos os livros. Você é tão Mallarmé! Eu sempre fui mediano. Nunca me orgulhei disso, ambos sabemos, mas nunca me envergonhei do que sou, embora sempre quisesse ser coisas maiores. Você sabe dos meus sonhos, confessei a você, sussurrado no escuro, enquanto choramingávamos nossas mazelas entre cinzeiros cheios e copos vazios. Você sabe dos desejos que tenho, alimentados durante pelo menos oito horas por dia, enquanto suporto gente chata no balcão daquela loja de departamentos. Você, espiritualizado e intelectualizado, no alto do púlpito, e eu aqui embaixo, querendo apenas que você me protegesse de tudo e fizesse eu me sentir vivo novamente, depois dos furacões e tempestades. Não, não estou me vitimizando. Você sempre me julga e sempre julga equivocadamente. Você sempre tem uma teoria que vai salvar meu corpo, minha alma, e a sua, principalmente. Não queria suas teorias filosófico-existecialistas, queria apenas que fosse simples. Mas você ainda acha que eu não entendi a proposta. Mais devir, menos perspectiva científica. Eu sempre coloco tudo em caixinhas, né? Você já disse isso outras vezes, que julgo o tempo todo, por tudo que você faz e pelo que não faz, que eu antevejo suas ações e julgo a partir disso, não vendo o que você realmente fez. Acho que temos mesmo que ser adultos e civilizados e colocarmos um ponto final nisso tudo. Simples assim. Por que você está achando tão difícil? Não, não me olhe assim, você sabe que eu não vou conseguir dizer o que tenho para dizer e não vou ouvir o que você tem de tão importante para dizer se você continuar me olhando desse jeito. Entendo que você está inseguro, triste, sufocado e por isso sumiu todo esse tempo, deixando para trás a vida que eu estava tentando construir com você. Eu também estou ferido. Queria que os sentimentos que sei, lá no fundo, que ainda temos um pelo outro, apesar de todo escombro que caiu sobre nós, nos libertassem, mas vejo que estão nos aprisionando numa daquelas caixas que você sempre diz que eu crio. Concordo com você, éramos tão livres e tão bonitos quando nos conhecemos. Onde será, Deus, que perdemos aquela alegria? Está sendo difícil lhe ver agora, sabe. Não consigo olhar nos seus olhos. Não consigo ver direito seu rosto. Existe uma nuvem que encobre seu rosto, através da fumaça do seu cigarro, e eu vejo somente imagens difusas. Quero que você me olhe, por favor, e quero ver você. Vamos conversar olhando nos olhos para que eu também me veja, através de você. Sei que você se sente desnudo quando olho você nos olhos e digo as coisas que digo. Eu também fico. Aliás, cheguei aqui completamente nu. De peito aberto, como quase nunca estive. Ah, você acha que isso é mais um dos meus personagens? Esta é mais uma das suas leituras desprovidas de julgamentos e regras fixas? Cadê o garçom? Outra dose de vodca, por favor. Sim, é a quinta. Você me olha com esses olhos de quem acha mesmo que ando bebendo demais, fumando demais e falando anedotas demais...Sim, é clichê. Eu sou totalmente samba-canção, você sabe. Você não gosta de trilhas sonoras para nossas conversas, mas é impossível eu não lhe ver aqui nessa mesa, tão Cézanne, tão Sidarta, tão libertário, tão sem regras fixas aplicadas a tudo, tão fluído, tão elevado espiritualmente, com essa cara blasé de quem já viu quase tudo e cansou das pessoas, com seu cigarro dançando no ar e sobrancelhas erguidas, e não pensar numa trilha sonora para isso. Talvez uma Julie London melancólica e intimista. Cry Me a River, quem sabe seja apropriado, embora você ache que nossos diálogos sustentam-se sozinhos, sem músicas. “You drove me, nearly drove me out of my head / While you never shed a tear / Remember, I remember all that you said / Told me love was too plebeian / Told me you were through with me” [*]. Certo, vou parar de cantar, sei que você acha “over”. Sem rodeios e sem músicas. É que a música me persegue, como naquele filme antigo que assistimos uma vez, lembra? Aquele onde Julie London aparece cantando essa música, perseguindo o protagonista pela casa. Como era mesmo o nome? "Sabes o Que Quero". Não, não foi uma pergunta. Esse era o nome do filme, "Sabes o Que Quero". Lembro, você dormiu durante o filme. É, você tem razão, sou muito Da Vinci para você. Talvez eu use mesmo muitas regras fixas para me entender, para entender você, para explicar o mundo, sempre cheio de teorias científicas e contornos lineares. Por isso perco o sentido e o significado do mundo. Como perdi agora. O conceito que tínhamos um do outro não se encaixa na gente. Somos mais que isso, somos outras coisas, além disso, não somos nada disso. Éramos grandes, éramos múltiplos, e viramos o que, no final? O que sobrou da gente e que sobrou de cada um depois de daquilo que chamamos de “nós”? Sei que você vai repetir o que já disse um dia, que sobrará de nós o que somos e que somos o que tivemos e o que conseguimos ser nas nossas medidas do possível. Sim, vamos embora, está tarde. Não, eu pago desta vez. Chamou o táxi? Claro que podemos dividi-lo. Você vai pegar suas coisas agora? Já deixei sua mala na portaria do prédio, como você pediu. Coloquei seus livros, aqueles discos da Bethânia, algumas roupas que achei espalhadas pela casa. É, sei que os livros são importantes para você, embora eu ache, lá no fundo, que os discos da Bethânia são muito mais. Não ficaria com eles, mas queria ficar com você. Acho que recolhi tudo, mas pode ter ficado alguma coisa esquecida em algum canto. Depois de tanto tempo, nem sei mais o que é seu e o que é meu. Nem sei mais o que um dia foi meu ou seu. Tenho ainda umas garrafas daquele vinho que você gosta. Podemos ouvir o disco que comprei hoje num sebo, se você quiser. Sim, é aquele disco raro de jazz que procurei por anos e que várias vezes fiz você caminhar pelas ruas das cidades que visitávamos juntos, garimpando em todas as lojas. Encontrei esse disco por acaso, quando já tinha desistido de procurar. Engraçado como isso acontece, eu precisei desistir para encontrar. Estou falando sobre o disco, mas também sobre você. Não se preocupe, não é mais importante. Você pode decidir amanhã de manhã, depois do café, como de costume, o que fará pelo resto da vida com o que restou de tudo que fomos nós. Sim, sua escova de dentes ainda está no banheiro e deixei seu pijama sobre a cama. Vamos? O táxi chegou. 


[*] “Você me levou, quase me levou à loucura / E você sequer derramou uma lágrima / Lembre-se, lembre-se de tudo que você disse / Disse-me que o amor era plebeu demais / Disse-me que estava cansado de mim”





3 comentários:

  1. Encontrei seu blog por acaso, enquanto pesquisava uma expressão no google, e acabei lendo, não somente o texto em que ela estava presente, mas também quase todo o resto de sua página :P E, pela qualidade e expressão de sentimentos contidos neles resolvi segui-lo.Parabéns!

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  2. Fabi, seja bem-vinda. Obrigado pelos comentários. Espero que possamos dialogar através das nossas janelas.

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