quarta-feira, 23 de novembro de 2011

REPARAÇÕES

Two Men”.  Lucian Freud.

... até que um dia, por astúcia ou acaso, depois de quase todos os enganos, ele descobriu a porta do Labirinto.

... Nada de ir tateando os muros, como um cego.

Nada de muros.
Seus passos tinham - enfim! - a liberdade de traçar seus próprios labirintos.


(Mário Quintana: LIBERTAÇÃO. in 'A Vaca e o Hipogrifo')


Bebendo o último gole de vinho tinto ele viu seu passado refletido nas minúsculas gotículas purpúreas translúcidas que restaram na taça. Meio trôpego chegou na janela aberta para o vazio. Era uma noite qualquer de novembro, clara e estrelada. De longe era possível ver a luz prateada da lua iluminar os cantos escuros das calçadas e invadir a penumbra do quarto, lírica e fria. Pela  janela aberta, além da da luz exterior, entrava um leve vento fresco. Como se pudesse se transportar para a rua, sentiu o frio que soprava pelas esquinas atravessando seu corpo, mas não fechou a janela. Suas noites eram frias, mesmo em novembro. E retornou para sua poltrona, aquecido pela manta xadrez com a qual cobria as pernas. Sentiu um breve aconchego. Por instantes sentiu que aquele conforto térmico poderia confortar a alma também. Mas não, nem mesmo acompanhado da inseparável taça de vinho.

Então, imerso em pensamentos e vinho tinto, lembrou de quando era jovem, jovem demais para sofrer com as preocupações que assolavam suas noites insones naqueles tempos frios. Quis retornar ao passado e reviver sensações frescas da juventude. Mas não havia como voltar. Ele já era homem feito. E o tempo é padrasto nessas horas, porque no fundo ele era um menino sedento por viver e se lançar em possibilidades, preso no corpo de um homem de meia idade, amargo, covarde e solitário.

Quando jovem, correu muitos riscos, embora tivesse muito a perder. O tempo passou, ele perdeu tudo o que lhe era mais caro, ao passo que temia cada vez mais perder o pouco – ou quase nada – que lhe restava. E naquela noite fria, embalado por Miles Davis e incontáveis taças de vinho, restava pouco. Tinha algumas memórias numa caixa velha de sapatos na parte mais alta do roupeiro, a pele envelhecida e ressecada, umas dores estranhas em lugares incertos, amarguras e ressentimentos.

Fez, mais uma vez, uma retrospectiva de sua vida, pautado por desilusões, desamores e abandonos. Abandonar e ser abandonado eram temas que ele conhecia muito bem. Deixou que as memórias dançassem diante de si, como salamandras de fogo num ritual. Tentou não se deter em nada, deixando que os pensamentos surgissem e desaparecessem naturalmente, emergindo à sua consciência e retornando ao mais profundo esquecimento. Mas ele não era um bom iogue, não meditava como deveria ser feito, ainda mais em noites brancas e ébrias como aquela. Sabia como exercitar o desapego (afinal, tantas leituras e horas de práticas orientais deveriam servir para alguma coisa), mas não conseguia praticar. Tinha uma percepção lúcida de suas limitações (afinal, tantas horas de psicanálise deveriam servir para alguma coisa), mas não respeitava seus limites.

Alguns pensamentos surgiam e se desfaziam logo depois. Outros, porém, eram insistentes e desses ele não conseguia se libertar. Rostos do passado se formavam em sua frente, alguns sons e palavras ditas surgiam, tomavam forma e agigantavam-se sobre ele, como espectros assutadores querendo devorá-lo. As imagens que se materializavam eram imensas e pareciam fundir-se, uma a uma, em uma única forma, cada vez maior, mais assustadora e mais opressiva. O grande monstro possuía muitos rostos, muitos braços, muitas pernas e dezenas de bocas que falavam simultaneamente frases sem sentido. Sentiu-se sufocado. Mas o que sentiu diante dele não era medo, era uma sensação ruim de reencontrar alguém que o fez sofrer, que foi embora para nunca mais voltar, que o fez chorar noites inteiras, abafado no travesseiro, que o fez fugir e se esconder em inúmeros copos de gim ou corpos desconhecidos.

Trêmulo e cambaleante, como se estivesse em transe, pegou um bloco de papel e uma caneta sobre a pequena escrivaninha de imbuia. Queria registrar suas sensações, fossem elas quais fossem. Deixou que os pensamentos surgissem e escreveu o que veio à sua mente. O que ficou registrado foi uma espécie de diálogo fragmentado entre ele e seus fantasmas mais secretos e assustadores. Mais ou menos assim:

[“... De certa forma fico feliz com sua visita. Tenho tanto pra lhe falar. Achei bonito você se dispor a estar comigo agora, depois de tanto tempo. Eu tenho passado por momentos um pouco tristes e solitários. Sei, porém, que hora ou outra voltarei a ter aquela alegria que tive um dia...

...Queria muito estar com você, sentir você perto, saber como a vida tem lhe tratado. Quero que você saiba que tenho um carinho imenso por você e que você desperta em mim sentimentos ternos. Porém, em dias de tormenta como estes, tenho sentimentos antagônicos e revoltos em meu coração...

...Mesmo sentindo ternura e carinho por você, às vezes sinto mágoa e rejeição. Sei que você vai dizer que não deveria sentir isso, que não tenho motivos, que você não fez nada para que eu sentisse isso, que são criações da minha cabeça. E tenho algumas indicativas que me apontam essa direção...

...Independente de ser realmente rejeitado ou negligenciado por você, o que devo ter como norte não é a negligência em si, mas o que faço dela. E não tem nada a ver com auto-suficiência, tem a ver com desejo de preservação. Que eu tenho e você também tem...

...Tudo é tão fugaz e efêmero...Tenho tateando no escuro, todos os dias, em busca de luz. Em alguns dias tudo parece mais escuro que em outros. Acho que agora, neste exato momento que você me visita, consegui abrir uma fresta para deixar a luz entrar. Mas tem horas que me sinto dentro de uma caixa hermética, em outras dentro de uma bolha de sabão...

...Os dias tem sido mais amargos depois de ter você. Mas tudo na vida é uma questão de interpretação. Só tenho medo de me tornar amargo e não ver mais cores em nada. Sinto às vezes que vejo tudo em preto e branco ou sépia, que vejo tudo em quadros, com molduras que limitam. No fundo, bem no fundo, queria que a vida fosse um caleidoscópio constante nas minhas retinas...

...Acho que escolhemos algumas coisas às vezes por não conseguirmos ver outras alternativas. Mas o que nos diferencia é a nossa capacidade de enfrentarmos o inevitável de forma verdadeira. O que quero dizer com isso é que em algumas circunstâncias a gente toma um rumo na vida que não é o que queríamos, mas acho que é nossa obrigação sermos autênticos na forma de enfrentarmos essas realidades. Eu tinha outros rumos a seguir, mas escolhi este que levava até você. E dentro dumas, mesmo não completamente feliz, porque a gente nunca está feliz com o que tem (e isto é um insight que tive agora) eu tento encarar as potencialidades do momento de cabeça erguida, mesmo sofrendo um pouco...

...Entendo que você também tenta lidar com a solidão como pode. Percebo um pouco como você sente essas coisas e como e como vê a saudade amanhecer. De forma alguma quero negligenciar seus sentimentos, mesmo incompreensíveis para mim e mesmo que eu discorde da sua forma de ser e agir. E acho que são realmente justos. Foram escolhas. Nem certas, nem erradas. Apenas aconteceram da forma que você conseguiu ver a vida. E sim, somos diferentes. Eu consigo viver sozinho, mas não quero, não gosto e não preciso. Essa é a minha escolha. Sei jogar cartas com a solidão, mas não preciso – e não quero – esse jogo... 

...De tudo que existe e existiu entre nós, de tudo que você me disse e eu lhe disse, o que não lhe servir, esqueça. Esquecer é uma prova de amor. Eu disse o que pensava (e continuo pensando), mas são os meus pensamentos. Você não tem que comungar. E se sua escolha foi deixar a vida lhe levar, que a vida lhe leve, bem leve...

...Você não precisa pedir desculpas. Você agiu como é e como pode. Não há o que desculpar quando agimos com o coração. Não achava necessário que nos encontrássemos para um pedido formal de desculpas, mas que bom que você veio me visitar. Sempre soube dos seus limites, sempre soube que essas coisas um dia aconteceriam. E não tenho percepções especiais não, são apenas os sentimentos que trago no peito. Nossos altos e baixos eram, ambos, na minha pobre opinião, ilusões. Não vivemos uma relação, tangenciamos a realidade e tentamos forjar uma vida que não tivemos. Acho triste. Não aconteceu. E a vida vai continuar...

...Eu teria tentado conduzir essas situações de forma diferente, se pudesse. Talvez não de forma melhor, mas sendo mais eu mesmo. Quando dizia que amava você não era da boca para fora, era o que eu sentia de mais profundo e verdadeiro no momento em que dizia. Nem antes, nem depois. E queria ficar você por muito tempo, porque esses sentimentos eram bons e queria entregá-los a você. Eu passei por momentos dolorosos, mas ainda estou vivo. E estar vivo significa que tenho o dever de continuar amando as pessoas e me permitindo encontrar momentos felizes. Eu queria lhe dar meus melhores sentimentos. Você não precisava fazer muito, apenas estar disposto e disponível. Queria ter tido a chance de amar e cuidar. Porque isso faria com que eu me sentisse vivo novamente...

...Acho que devia pedir desculpas por todas as inúmeras vezes que magoei você. Eu tendo a ser agressivo quando estou machucado. “Sou fera ferida”, como cantaria Bethânia. Sou contraditório. Mas me permito ser essas coisas todas porque tento achar o melhor caminho...

...Sinto uma tristeza funda pela maneira que você diz que vê como eu lhe vejo, mas lhe vejo da maneira que você se mostra para mim. E não, não estou preparado para “esses revezes” da vida que você sempre fala, apesar de ter feito todo tipo análise, de LSD a choques elétricos. Não estou preparado do jeito que você quer, não do jeito que você espera que eu aja, não do jeito que nem você mesmo agiria se estivesse no meu lugar. Tenho o sentimento que você, se estivesse no meu lugar, não teria tido uma atitude muito búdica. Eu estava machucado, e estava sendo machucado por você, e não quero passar por isso novamente. Por isso digo: as coisas aconteceram da maneira que aconteceram, não há como voltar atrás e refazer trajetos. Pode ser diferente daqui pra frente? Deve. Minha obrigação é me tornar um ser humano melhor...

...Ainda afirmo que a solidão que você resmunga foi provocada por você. Eu não queria lhe deixar sozinho. Dispus-me de todas as formas a lhe fazer companhia. E se você rechaça minha presença, não há muito que fazer...

...Quanto às minhas expectativas, digo que consigo me virar sozinho. Eu as criei, você não correspondeu. Você foi você mesmo, eu que não quis ver. Acho que meu erro foi achar que, mesmo vendo suas ausências e as minhas urgências, poderíamos ter sido mais. Não fomos, porque o destino não quis assim e não tivemos coragem de mudá-lo. E ambos superaremos nossas falhas e seremos melhores no futuro. É nossa lei, é nossa questão, virar esse mundo, lembrando novamente da Bethânia. E deixemos que o tempo se encarregue e nos carregue...

... Quero que você encontre um rumo, seja ele qual for, com quem for, onde for. Desejo que você encontre seu caminho, que ele seja repleto de amor e que você seja feliz. É isso que eu quero lhe dizer antes de você ir embora para sempre - porque sei que você vai agora para nunca mais voltar – e já que você veio me visitar, assim repentinamente, eu quero te dizer essas últimas palavras... ]

Tendo a alma invadida pelo som tristíssimo, puro e claro, baixo e minimalista, do trompete de Miles Davis, fechou os olhos, respirou fundo e tornou a abri-los. Estava sozinho novamente. Olhou à sua volta, estava tudo exatamente do mesmo jeito, mas nada permanecia igual. Viu, finalmente, a possibilidade de fazer as pazes com seus fantasmas, reconciliar-se com seu passado, tentar seguir vivendo ou poder, enfim, descansar.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Diga o que pensa...