Rafael Perez - "Color Drawing VIII"
[Para ler ao som de John Coltrane – In a Sentimental Mood]
Ontem foi um dia especialmente triste. Não porque eu pensei muito em você, sabendo que você não está mais aqui, mas porque eu não senti uma saudade especialmente intensa. Abri as janelas (o dia estava lindo) e deixei o sol entrar, sacudi os pesados tapetes da sala, onde nos deitávamos, com taças de vinho nas mãos, para ouvir Coltrane e sonhar, bati a poeira daquelas almofadas indianas que você gostava e que ainda tem, lá no fundo, seu cheiro impregnado e provavelmente algum fio de cabelo seu, meio dourado e muito fino. Mais um pequeno fragmento seu que ficou impregnado na minha vida de forma indelével.
Meus dias tem sido repletos dessas pequenas presenças imersas em grandes ausências das coisas cotidianas. Eu vejo que estou conseguindo sobreviver, apesar de toda sua presença na minha vida. Acho que eu ando meio ausente de mim também, sabe. Tenho tentado sair de casa para não lhe encontrar. E você me persegue pelas esquinas desta que se tornou a “nossa” cidade. Não, não é que eu esteja renegando você, pelo contrário, você é uma das pessoas mais bonitas que conheci. E você sempre foi tão humano e tão errático quanto eu. Nunca quis fugir de você. Acho que você é quem quis fugir de si mesmo.
Mas isso não importa mais. O que importa é que me restam saudades, flores e incensos para lembrar você em quantidade suficiente para fazer um altar em sua homenagem, além de algumas fotografias que tirei enquanto você estava distraído olhando para o nada perdido em seu mundo interior, com as mãos para trás olhando para o céu ou fumando um cigarro e vendo a fumaça se dissipar. Eu observava você de longe, com minha câmera na mão, querendo captar a sua alma. Percebo, agora que você se foi, revendo as fotos que guardei numa caixa de chocolates que você me presenteou um dia, que sua alma está aqui nas minhas fotos. E esse é meu altar em sua homenagem.
Queria ter ido encontrar você no dia de ontem. Mas achei melhor lhe encontrar nos meus pensamentos mesmo. Caminhando pelas ruas, conversando com as pessoas, indo ao mercado comprar ervas aromáticas e chás, arrumando suas flores preferidas em vasos imitando Murano, como você gostava e como costumava fazer sempre que algum dos seus queridos lhe visitava, preparando a nossa casa como se você já fosse chegar, me abraçar apertado e me propor um passeio no fim da tarde ao lugar onde costumávamos ver o sol se por alaranjado contra o céu violáceo.
O dia de ontem em si não significava nada para mim. Não quero lembrar-me de você em dias como esse. Você está vivo dentro de mim, e isso é o que importa. Você me ensinou tantas coisas, me fez crescer e me tornar uma pessoa melhor. Não que você fizesse isso conscientemente. Acho que não. Você sempre foi um meninão mimado e egoísta, que batia pé e fazia beiço quando as coisas não eram do seu jeito. Eu também era – e ainda sou. Mas aprendi a tolerar e amar na diferença. Aprendi a controlar meus impulsos, pelo menos um pouco, mesmo gritando com você e pedindo para que você abrisse os olhos e visse que estava me ferindo.
O que sinto agora é que nossas lembranças estão ficando tão difusas na minha mente. Às vezes tenho sensações que relaciono a memórias suas, mas depois vejo que são de outras pessoas, de outros rostos, outras vidas, outros momentos. Como se eu carregasse o mundo inteiro no peito. Talvez essas lembranças que tenho sejam de coisas corriqueiras, que acontecem com todo mundo e eu poderia dizer isso de qualquer pessoa que tivesse cruzado meu caminho. Mas me tornei um pouco impaciente com as outras pessoas depois de você, acho que por esses mesmos motivos. Como se as pessoas fossem sobrepor-se a você, ocupar seu lugar de direito. E isso não é bom. Acho que tento ocupar espaços vazios de você. Você sabe como tenho dificuldades com espaços desocupados.
Voltando à tristeza que senti ontem, eu pensei que poderia estar lhe esquecendo de vez. Porque eu não sofri aquele sofrimento cristão porque você não está aqui. Especialmente ontem eu fui mais sobrevivente que de costume. Tive medo de estar me tornando insensível e de ter colocado você numa gavetinha escondida da minha vida, já que você nunca mais estará aqui. Mas vi que não, não era isso. Acho que você está ocupando o lugar mais bonito do meu coração agora. Porque a dor está passando, embora eu ainda choramingue pelos cantos de saudade, nas noites infinitas, estreladas e frias daqui.
Se eu soubesse como chegar até você, eu lhe entregaria esta carta e as flores que escolhi, mesmo não lembrando direito se são as suas preferidas. Talvez levasse uma caixa daqueles chocolates com amêndoas que você adorava e que tenho sempre em casa, como se lhe esperasse todos os dias para um café. Desejo que você encontre seu caminho, onde quer que esteja, como tenho tentado encontrar o meu.
Do Seu,
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Dias tristes...tempos tristes tem tornado tua escrita ainda mais bela. Ah estes tempos estranhos e difíceis, como podem ser tão sábios? brindemos...
ResponderExcluirDias tristes também fazem parte da vida, querida Má. Brindemos à felicidade que permeia as tristezas e que sempre prepondera...
ResponderExcluirLuc, o que mais me encanta em ti e na tua escrita é que, mesmo na pior dor, você SEMPRE sai de cena com elegância e beleza. Sim, brindemos, Má. Porque poesia não é para qualquer um.
ResponderExcluirElen,