segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

QUARTA-FEIRA GORDA

Era uma quarta-feira cinzenta. E de cinzas também. Muito embora naquele lugar onde estava, distante de tudo com o que se identificava, ninguém soubesse o que significavam aqueles dias que culminavam com a “quarta-feira de cinzas”. Em todo caso, amargava a quarta-feira como se de cinzas realmente fosse. E sem fantasias. Sentado na cafeteria de sempre, lendo pela segunda vez o mesmo livro, bebendo um expresso bem forte sem açúcar (sobre o qual dizia, em tom ácido e melancólico: “café tem que ser amargo, de doce basta a vida”), via a cidade fluir lenta pela janela da cafeteria. Tudo tinha um tom arrastado, preguiçoso, indolente. Ressaca do dia anterior, quando festejava-se a carne, antes da penitência cristã que começava. Não havia reverenciado a carne em festejos pagãos, mas sentia o peso da penitência e da culpa cristã sobre seus ombros.

Engraçado como a vida é, pensava, comemora-se da forma mais pagã sabe-se-lá-o-que num dia para no dia seguinte, iniciáticos, todos rumarem solenes à purificação. Em todo caso, não havia comemorado nada no dia anterior.

Havia desembarcado naquela terra com a mesma impressão que talvez teria a Família Real portuguesa desembarcando em terras inóspitas do Novo Mundo: estranhamento e espanto, arrastando arcas com seus tesouros e instalando suas vidas de desterrados num novo lugar. Mas seu caminho era o oposto, não estava desbravando um novo mundo – ou talvez estivesse, mesmo sem ter a exata consciência de suas conquistas. Estava sim redescobrindo a si mesmo ou fugindo de fantasmas imaginários. Misteriosamente quixotesco, miticamente socrático e desnecessariamente hercúleo.

Ainda olhando com olhar de estrangeiro (forasteiro de tudo o que via e ouvia) observava através da janela como se estivesse em uma redoma, pretegido do vento que soprava frio e balançava as copas das árvores da praça em frente. O ambiente era preenchido pelo aroma quente e aconchegante do café que bebia lenta e cerimoniosamente. Sentia um gosto amargo no fim de cada gole. Não dos excessos cometidos em nome do que julgava certo sucumbir ou do que não conseguia resistir. Tampouco da culpa institucional da quaresma que se iniciava. Era o gosto da vida que sentia indigesta e tóxica em seus poros. Não sentia, porém, qualquer desconforto agudo inabitual. Era a mesma dor fina e funda que o fazia ver com brandura e serenidade a vida passar lá fora, prostrado e conformado.

Seu olhar e seus pensamentos, perdidos entre o céu cinza e as copas das árvores, esbarraram num vulto suave, dourado e triste. Via refletido no espelho da grande janela, em primeiro plano, seu próprio semblante, prateado e sulcado pelo cansaço, e em segundo plano aquele vulto desconhecido e ao mesmo tempo familiar, de cabelos desalinhados, extremanente finos e prateados como os seus (sinal que o tempo foi realmente implacável com ambos).

Quando os olhares escuros e sem brilho de ambos cruzaram-se, a cena, de sépia que parecia, adquiriu magicamente cores mais vibrantes. Esse movimento durou poucos segundos, ou o tempo de três ou quatro passos, tempo necessário para passar pela fachada do antigo prédio de esquina.

Desviou o olhar para perde-lo nos contornos da pequena e bem esculpida mesa de ébano, sentado na mesma posição, segurando a xícara de café com mão direita, enquanto tentava em vão aquecer a esquerda no bolso do casaco, ele pensou, quase reconfortado, que as coisas ficariam bem, fosse o que fosse. E um vento gelado soprou da porta que se abria. O vulto dourado e prateado entrou lentamente, entre as golfadas geladas que faziam tilintar os adornos indianos e tibetanos espalhados pela cafeteria. Um aroma de alfazema e umidade misturou-se ao do café. Instintivamente seus olhos procuraram identificar e desvelar as formas que entravam. Via detalhes em close-up: o momento em que puxou a gola do longo casaco verde musgo de lã de alpaca, com grandes botões metálicos, que lhe conferia um ar nobre, composto também - agora conseguia ver sob a luz das lanternas orientais - por um nariz longo, fino e bem desenhado, pelos traços definidos e delicados e pelos olhos amendoados e tristes. Analisou detidamente cada detalhe, cerimonioso como bebia seu café. Seus olhares cruzaram-se mais detidamente. Não conseguiu ver como eram as mãos, sua mais secreta obsessão depois dos olhos, porque ambas estavam cobertas por distintas luvas de pelica, mas quase conseguiu sentir o roçar da pele ressecada contra a gola do casaco.

A porta fechou-se. O vulto agora dourado, prateado e verde musgo caminhou pelo longo salão. O som que ouvia mais nitidamente, apesar dos barulhos das conversas, xícaras tilintando e do sax de Chet Baker ao fundo, era o dos brilhantes sapatos de bicos finos que estalavam contra o assoalho de taboão envelhecido.

Não acompanhou com o olhar o movimento que se desenrolava. Fechou os olhos, ouviu os passos, sentiu o cheiro de alfazema (provavelmente dos incensos) e imaginou a cena, frame a frame, reconstituindo, de olhos fechados, o trajeto da porta até o balcão de carvalho ao fundo. Provavelmente o caminho foi percorrido com ar altivo e passos firmes, deve ter desabotoado o casaco, abrindo-o com sobriedade, tirado as luvas, desnudando mãos absolutamente brancas e finas, de dedos longos e unhas bem feitas. Colocou as luvas no bolso do casaco? Desenrolou o cachecol do pescoço, mostrando-o frágil e longo? Provavelmente retirou da testa os ralos e desalinhados cabelos prateados com ajuda das mãos, sentou-se no mocho alto do balcão, acomodando-se como pode com o longo casaco. Talvez tenha flexionado uma perna no banco e apoiado a outra no chão, mostrando a calça de alfaiataria risca de giz bem cortada e os sapatos impecavelmente lustrados. Provavelmente pediu um café para se aquecer, apoiando um dos braços no balcão, enquanto segurava com a outra o cachecol sobre a perna. Imaginando assim, em plano aberto, a cena composta pelo gracioso ser de pescoço longo, ar altivo, prateado, longilíneo e obscuro repousado no balcão, lembrava nitidamente uma obra de Modigliani.

Congela a imagem "modiglianesca" na memória. Abre os olhos e retoma a realidade. Pensa sobre o que acabara de fazer. Relembra de algumas de suas “terças-feiras gordas”, “quartas-feiras de cinzas” e muitas quaresmas. Sorri de canto. Volta-se para seu café muito amargo e para seu livro muito doce. Reler um livro é como revisitar o baú de lembranças e mimos do passado. Sempre se redescobre algo propositalmente esquecido.

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