sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

UMA DOR


Os olhos dele eram profundos e escuros como poços. Abismos negros cercados de olheiras e vincos do tempo e dos desastres cotidianos. Marcas que conseguia ver com nitidez impressionante todas as manhãs, quando, pavloviano, emergia da cama ao som do despertador e cambaleante rumava ao minúsculo banheiro, do quarto não menos, alugado num subúrbio, pago com o suor de seus dias em um emprego medíocre.

Enquanto observava seus abismos abissais no espelho, distanciado como se fosse outra pessoa, lembrava daquela voz doce, suave e levemente rouca que certa vez lhe disse o que seus olhos eram. Daquele momento em diante, lembra, começou a ver o quanto seus olhos eram realmente soturnos. Ouvira que seu olhar às vezes pousava no infinito, e “clic”, desligava-se da realidade, pairando sobre o nada. Essa cisão com o que chamavam de “realidade presente”, foi traduzida assim: uma dor. Uma dor que trazia no peito como uma bagagem que não conseguiria jamais abandonar.

E era realmente em uma dor que pensava. Não sentia essa dor no momento em que pensava, mas olhava para dentro de si, para o passado, para lembrar das dores vividas, como sobreviventes de campos de concentração olham para suas cicatrizes para lembrar do holocausto. Não sentia essa dor, principalmente quando na companhia daquele que observara seu olhar distante, porque despira-se de seu passado e estava de peito aberto para o que fosse. Mas precisava lembrar, com se estivesse parado em frente a um monumento que lembrava os mortos da guerra, como se observasse Guernica em todos os detalhes. Precisava rememorar aqueles escombros acumulados até aquele exato momento. Que fosse para suspirar aliviado e ver que sobreviveu.

Não lembrava de suas dores com mágoa ou qualquer outro sofrimento. Era apenas uma reminiscência daquelas dores sentidas. Era uma lembrança quase terna de tudo o que foi e uma retomada do que conseguira tornar-se até estar ali, pousado sobre aqueles braços amorosos no leito secreto de ambos, um barco à deriva num mar revolto que magicamente tentavam acalmar com seus corações.

Ambos tinham lados obscuros. Identificaram-se por isso, reconheceram-se na multidão. Pensavam aliviados que esse segredo não confessado que deixavam, em silêncio e aos poucos, ser desvelado ou roubado pelo outro seria redentor. Uma ponte construída sobre angústias, medos e sonhos singelos como passearem de mãos dadas sob o sol.

Deitados lado a lado, vendo as ranhuras e amarelados do teto do minúsculo quarto de subúrbio, iluminados pelo pôr-do-sol que entrava pela janela, entre os musgos dos telhados de terracota que emolduravam em primeiro plano a janela, exaustos de suas certezas passadas e ansiosos por um futuro incerto, entrelaçavam com força as mãos, suspiravam profundamente três vezes para expelir seus vapores interiores na atmosfera, fechavam os olhos e lançavam-se na direção que seus corações mandavam.

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